Por BBC
O Supremo Tribunal Federal (STF) pode começar a julgar na sexta-feira (04/12) uma ação judicial com potencial para afetar o destino dos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), além de mexer nos planos do presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido).
O processo é uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). O partido pede que o STF dê “interpretação conforme” ao Artigo 57 da Constituição de 1988, e proíba a reeleição para o comando da Câmara e do Senado, em qualquer hipótese.
No jargão, “interpretação conforme” é o termo usado para designar um tipo de decisão do Supremo. Neste caso, a Corte decide que apenas uma dentre várias interpretações possíveis de determinada lei ou norma está de acordo com a Constituição.
O Artigo 57 da Constituição diz que é “vedada a recondução para o mesmo cargo, na eleição imediatamente subsequente”. Ou seja, pelo texto, é impossível alguém presidir a Câmara ou o Senado mais de uma vez seguida.
Apesar disso, a Câmara e o Senado já permitem hoje a reeleição para os seus presidentes — desde que ocorram em mandatos diferentes. Por exemplo: o próximo presidente da Câmara, que chefiará em 2021 e 2022, poderá disputar novamente o comando da Casa em 2023, por se tratar de outro mandato (depois de uma nova eleição geral).
No caso da Câmara, a possibilidade de reeleição está prevista no Regimento Interno. No Senado, nem isto: a reeleição se baseia em parecer da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa, de 1998.
O PTB pede ao STF que declare inconstitucionais o trecho do Regimento Interno da Câmara e o parecer do STJ, para proibir a reeleição em qualquer caso. No entanto, o efeito pode ser exatamente o contrário: o Supremo pode decidir que este tema diz respeito somente ao Legislativo.
Neste caso, a Suprema Corte abriria caminho para os atuais presidentes da Câmara e do Senado tentarem a reeleição, o que não seria possível pelas regras atuais.
Davi Alcolumbre não esconde a vontade de tentar a reeleição para o comando da Casa Alta — ele está no primeiro mandato. Já Rodrigo Maia diz publicamente que não pretende disputar a reeleição, mas adversários dele desconfiam de que ele pode sim ser candidato, a depender do que decidir o Supremo.
Por decisão do ministro Gilmar Mendes, o julgamento será no chamado “plenário virtual” do STF.
Apesar do nome, não se trata de uma videoconferência: nesta modalidade de julgamento, os ministros vão depositando seus votos por escrito num sistema online ao longo de alguns dias, sem debater verbalmente o assunto. O PTB recorreu da decisão de Gilmar e pede que o julgamento seja feito por videoconferência.
Abaixo-assinados contra Maia e Alcolumbre
O resultado do julgamento que começará na sexta também pode afetar os planos do ocupante do Palácio do Planalto, do outro lado da Esplanada dos Ministérios.
Ter congressistas simpáticos no comando do Senado — e principalmente da Câmara — é fundamental para o sucesso do governo.
Jair Bolsonaro vê Davi Alcolumbre como um aliado. Os dois se reuniram pela última vez na quarta-feira da semana passada, segundo a agenda do presidente.
Já Rodrigo Maia tem uma relação ruim com o chefe do Executivo, e frequentemente rebate falas de Bolsonaro. A partir de fevereiro de 2021, o Planalto gostaria de ver a cadeira de Maia ocupada pelo deputado Arthur Lira (Progressistas-AL), atual líder do seu partido na Câmara.
Nos últimos dias, a disputa pelo comando das duas casas se tornou a principal discussão em Brasília. As votações são em fevereiro do ano que vem, mas as articulações já estão em curso.
Na Câmara, circula um abaixo-assinado contra a possibilidade de reeleição de Rodrigo Maia — se for realmente candidato e vencer, o político carioca chegará ao quarto mandato à frente da Casa. No caso de Maia, a carta contra sua reeleição tem as assinaturas de partidos do Centrão, como Progressistas, PL, PSD, Avante, Solidariedade e Patriota; e de partidos de esquerda, como PSB, PSOL e Rede.
No Senado também há um abaixo-assinado contra a reeleição de Alcolumbre. A articulação é encabeçada pelos senadores Randolfe Rodrigues (AP) e Alessandro Vieira, e recebeu as assinaturas de vários dos integrantes do grupo conhecido como Muda Senado.
Em 2003, pai de Arthur Lira tentou mudar regra
Esta não é a primeira vez que os presidentes da Câmara e do Senado tentam mudar a regra para se reeleger.
A última tentativa deste tipo foi feita em 2003 — e um dos principais defensores da medida foi justamente o pai do atual líder do PP, Arthur Lira.
Virtual candidato do Planalto ao comando da Câmara, Arthur Lira seria um dos maiores prejudicados se a mudança defendida por seu pai na época fosse aprovada hoje.
Benedito de Lira, então deputado pelo Estado de Alagoas, apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para tentar mudar a regra.
“Entendemos não haver mais sentido proibir a reeleição para a Mesa das Casas Congressuais quando a própria Constituição permite que ela ocorra em nosso País para os cargos de Presidente da República, Governador de Estado e do Distrito Federal e Prefeito”, escreveu Benedito de Lira.
A proposta tinha o apoio dos presidentes da Câmara, João Paulo Cunha (PT), e do Senado, José Sarney (PMDB), que tinham interesse em se reeleger. Quem conta é o ex-presidente da Câmara, Aldo Rebelo (2005-2007).
“Em 2004 teve essa tentativa de mudar a regra com uma emenda à Constituição, durante o mandato de João Paulo Cunha, na Câmara, e José Sarney, no Senado. E foi derrotado por uma margem muito pequena”, diz Aldo Rebelo.
A PEC foi votada em maio de 2004 e teve 303 votos, só cinco a menos que os 308 necessários para a aprovação.
“Por ter sido derrotada, nem foi votada em segundo turno na Câmara, nem foi para o Senado. Morreu ali mesmo. E agora volta essa discussão. Se naquela época foi necessário uma emenda à Constituição para tentar mudar (a regra), como pode agora o Supremo tentar interpretar o que a Constituição já estabelece com tanta clareza? Sinceramente, acho estranho”, disse Rebelo à BBC News Brasil.
Regra da Constituição é clara, dizem especialistas
Por sua vez, o comando do Senado argumenta que a forma de escolha dos presidentes das duas casas do Legislativo é uma questão interna do Congresso — na qual não cabe a intervenção do Judiciário.
“De natureza essencialmente política, as regras que disciplinam as eleições internas das Casas Legislativas (…) não poderiam sofrer intervenção judicial, sob pena de violação do princípio da separação dos poderes”, diz um parecer da Advocacia do Senado Federal juntado ao processo.
Além disso, o Regimento Interno da Câmara e o parecer da CCJ do Senado não são “leis” propriamente ditas — e portanto não podem ser discutidas em uma ADIn no STF, segundo argumenta a advocacia do Senado.
Apesar disso, professores de direito constitucional ouvidos pela reportagem da BBC News Brasil concordaram com o argumento do PTB — o de que o texto da Constituição é claro e taxativo a respeito do assunto.
“A meu ver, a Constituição é bastante clara sobre essa questão. Diz que os mandatos são de dois anos, vedada a recondução na eleição seguinte. Ponto”, diz Roberto Dias, professor de direito constitucional da FGV-SP.
“É uma regra que concretiza um princípio constitucional bem importante, que é o princípio republicano. Decorre do princípio republicano a ideia de periodicidade dos mandatos. Você ter periodicamente a troca dos mandatos, com eleições ou reeleições dentro dos parâmetros fixados pela Constituição. Portanto, não me parece que exista espaço para fazer essa interpretação que vincula a reeleição ao mandato”, diz o especialista.
“Pessoalmente, acho que o José Afonso da Silva (jurista citado no pedido do PTB) tem razão. São interpretações de conveniência. O que diz o texto (da Constituição)? Que o mandato é de dois anos, e que não pode ter reeleição. Se houver uma interrupção, se o indivíduo ficar fora do cargo por um tempo, aí pode voltar a disputar normalmente”, diz Elival da Silva Ramos, professor titular de direito constitucional da Faculdade de Direito da USP.
“Entende-se, de maneira geral, que quem está no cargo tem vantagens competitivas. Tanto é verdade que no Brasil não havia reeleição para Presidente (da República), e isso era da nossa tradição republicana, inclusive. Foi quebrado com a emenda constitucional da reeleição (em 1997, no governo do ex-presidente tucano Fernando Henrique Cardoso). E, na prática, é só fazer a estatística: o balanço é amplamente favorável a quem está no cargo e disputa a reeleição”, diz Ramos.
“A meu ver, se o STF entender desta forma, de que é uma questão que cabe somente ao Congresso, estará se equivocando. Há uma disposição constitucional expressa. O STF, como órgão de cúpula do Judiciário e guardião da Constituição, tem o dever de impedir que algo inconstitucional seja feito pelo Parlamento. Neste caso, o Congresso estaria agindo de forma inconstitucional, e o STF deveria impedi-lo”, diz Roberto Dias à BBC News Brasil.
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