Por Poder 360
O presidente Donald Trump passou os últimos 60 dias repetindo mentiras de que vencera a eleição e atormentando os advogados da Casa Branca com uma dúvida infantil: Posso perdoar a mim mesmo? Posso incluir o meu nome nos atos de clemência? Esse perdão é uma tradição americana inscrita na Constituição de 1789 –o presidente pode perdoar criminosos, mas não a si próprio, óbvio.
O caso mais célebre talvez seja o perdão ao republicano Richard Nixon, que renunciou para não sofrer impeachment e foi perdoado pelo seu sucessor, o democrata Gerald Ford, em setembro de 1974. Não há a menor chance de isso acontecer com Trump por conta do conjunto da obra, coroada com a invasão do Capitólio, um episódio que fez a democracia norte-americana parecer uma república de bananas.
O futuro de Trump é o mais incerto de todos os presidentes que deixaram a Casa Branca: ou ele será condenado e preso ou se tornará uma liderança forte para disputar a eleição de 2024. Pode também acabar na TV, onde fez sucesso. Se for preso, isso terá efeitos sobre todos os líderes da extrema-direita do mundo. Se tornar-se uma liderança, também.
A vida de Trump não será nada fácil após deixar o cargo hoje às 12h. Ele não terá Twitter, Facebook ou YouTube para falar com seus milhões de seguidores por conta das suas postagens mentirosas. Seus débitos até 2024 somam cerca de US$ 900 milhões. O Deutsch Bank, o principal credor, já falou que não faz mais negócios com Trump depois que ele incitou grupos de extrema-direita a invadirem o Capitólio. Há investigações contra ele de vários gêneros, sendo a mais grave delas a de sonegação fiscal, conduzida em Nova York por procuradores que gostam de sangue. A associação profissional de golfe baniu seus campos das competições oficiais. A pandemia está estrangulando seus hotéis, um dos setores mais afetados pela covid-19. Desgraça é como avalanche. Quando ocorre mais de uma, seus efeitos são devastadores.
Há ainda o risco de que os republicanos do Senado prefiram jogar Trump debaixo do ônibus, como se diz nos EUA, aprovando o impeachment, o que o impediria de disputar as eleições de 2024. O Partido Republicano está diante de uma escolha de Sofia: ou segue com Trump, que tem votos como nenhum outro nome do partido mas trás junto uma agenda incivilizada, ou tira um dos poucos palcos que o ex-presidente conta para o futuro e reassume a agenda conservadora sem afrontas à democracia. Na Câmara, 10 republicanos votaram com os democratas para a remoção de Trump. No Senado, que está dividido, esse número é uma incógnita. Uma pesquisa da rede de TV ABC/Ipsos aponta que 56% dos americanos acham que Trump deveria sofrer impeachment; 43% defendem que não.
Trump foi o grande animador de torcida da extrema-direita nos últimos quatro anos. Há respingos de trumpismo em todos os governos com viés autoritário que se elegeram no rastro de sua ascensão nos EUA, seja na Hungria, na Polônia ou, principalmente, no Brasil. O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) virou um adulador de Trump sem igual no mundo. Foi o único dos direitistas autoritários a seguir fielmente a receita de Trump para a pandemia, com negacionismo e remédios sem comprovação científica, com resultados tão desastrosos que colocaram em circulação até no Congresso a ideia de impeachment contra Bolsonaro.
Essa roda da fortuna começa a mudar a partir de hoje, com a posse do democrata Joe Biden. É claro que os EUA continuaram divididos como nunca, mas não se sabe qual será a reação de Trump às desgraças em série que virão. Biden é um homem metódico, que tomava o mesmo trem todo dia. Parece aquele católico que alisava os vincos da calça com os dedos em pinça enquanto assistem a missa. Biden já disse que prefere olhar para a frente, uma forma cifrada para dizer que não vai se empenhar em processos contra Trump. Há, porém, setores de esquerda que defendem uma punição exemplar a Trump, pela maneira como ele tripudiou sobre instituições democráticas. Como Biden depende da ala esquerdista do partido para implementar agendas caras aos mais jovens, como o acordo climático e o desmatamento na Amazônia, pode ser que ele mude de opinião sobre jogar a opinião do presidente, que tem peso, nos processos contra Trump.
A democracia americana tem uma força simbólica tão grande no mundo que esses movimentos vão repercutir por aqui. Muitos apoiadores de Bolsonaro, principalmente a turma do dinheiro pesado, usavam a sua proximidade com Trump para justificar a adesão. Com os desastres da pandemia e da economia e a incompetência descomunal do governo, já começa a circular entre empresários a ideia de que talvez não seja tão ruim jogar Bolsonaro debaixo do ônibus –ou seja, abrir um processo de impeachment. Trump se livrou de um desses processos porque ainda era popular. Aqui a popularidade de Bolsonaro está em queda, como mostra a última pesquisa do PoderData. É óbvio que um processo de remoção é muito mais complexo, mas o vento que vem dos EUA agora sopra contra Bolsonaro.
Foto: Shealah Craighead/Casa Branca – 12.jan.2021