Por Estadão Conteúdo
Estudioso, há três décadas, do evangelicalismo, o antropólogo Ronaldo de Almeida, da Unicamp, vê o eleitorado evangélico – grupo que representa hoje 30% da população brasileira – sujeito a uma variedade de elementos que incluem desde alinhamento a valores morais, a conjuntura política e situação econômica. Isso explica a confiança já depositada, no passado, em nomes como Fernando Henrique Cardoso (PSDB), Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e agora Jair Bolsonaro.
Esse perfil, avalia o professor, pode representar uma dificuldade ao atual presidente e para 2022, num cenário em que opositores como Lula e Ciro Gomes também acenam a essa parcela do eleitorado. “Bolsonaro vem perdendo em geral. E também perde no segmento evangélico”. Pesquisa Ipec divulgada pelo Estadão na sexta-feira mostra Bolsonaro atrás de Lula (41% a 32%) nas intenções de voto entre evangélicos para 2022.
Ronaldo de Almeida é co-organizador da coletânea ‘Conservadorismos, fascismos e fundamentalismos: análises conjunturais’, editora da Unicamp, publicada em 2018. Leia a entrevista a seguir.
A seu ver, existe um perfil claro do eleitorado evangélico?
O campo evangélico é múltiplo, variado. Costuma ser visto de maneira homogênea, mas há uma diversidade interna, que vai da esquerda, um grupo pequeno, à direita e extrema-direita, que forma um grupo maior. É um pouco desigual, mas hegemônica no conservadorismo. É importante também diferenciar ainda a liderança do fiel. O que vemos na TV, os personagens conhecidos, os legisladores com discurso acentuado, acabam sendo mais conservadores do que os fiéis. A fé evangélica é mais flexível do que a moralidade defendida por essas lideranças. O discurso público sobre temas como homossexuais, por exemplo, pode ser negativo, mas o fiel é mais tolerante. Os discursos das lideranças são muito mais pesados que o fiel médio.
Como o comportamento do presidente e dessas lideranças influencia este segmento em questões como a vacinação contra a covid-19, por exemplo?
Com certeza. É impressionante como diversas lideranças, como Silas Malafaia e Edir Macedo, saem falando as coisas que o presidente fala. Macedo colocou em suspeita a vacina, Malafaia defendeu a ivermectina. Eles são linhas auxiliares de Bolsonaro. Então, o efeito nos fiéis acontece sobretudo pela mediação das lideranças, que fazem um péssimo serviço.
Como surgiu e se consolidou a participação dos evangélicos na política?
A participação crescente é fruto da redemocratização, do surgimento de novos atores políticos. A entrada é pelo Legislativo, com candidaturas que trazem pautas únicas ligadas a bandeiras religiosas. Depois de um tempo, chega-se ao Executivo, com prefeituras e governos, até o desejo pela Presidência. Algo mais recente aconteceu de uma década para cá, que é a presença desse grupo no campo jurídico, desde Ministério Público a Advocacia-Geral da União, Defensoria Pública, um campo que era tradicionalmente ocupado pelo catolicismo e com pouca presença evangélica. Teve a criação de entidades como a Anajure e o IBDR. No campo da Lava Jato apareceu muito. (O procurador Deltan) Dallagnol em Curitiba envergou a bandeira evangélica, o (juiz Marcelo) Bretas no Rio. Então, é efeito do próprio crescimento evangélico. O próprio governo Bolsonaro deu vazão a isso. A entrada de um nome “terrivelmente evangélico” no Supremo Tribunal Federal, se confirmada, seria a coroação de um processo já em curso.
Como Bolsonaro conseguiu atrair e passar a representar esta parcela do eleitorado mesmo sem ser evangélico?
Bolsonaro compôs um perfil religioso “transcristão”, para atrair de evangélicos a católicos. É um jogo ambíguo, intencional e equilibrado para manter uma dupla imagem. É católico, mas frequenta cultos evangélicos, é casado com uma evangélica. Ele mantém a extensão simbólica e consegue amarrar tudo no conservadorismo. Até porque ser evangélico seria cair na fragmentação interna deste grupo. Ele veio “de fora”. É claro, isso também se construiu pela força do antipetismo em 2018. Antes disso, em 2006 Lula foi muito bem votado por evangélicos, depois houve um equilíbrio nas eleições de Dilma, depois uma uma inversão com Bolsonaro. É um eleitorado que tinha se alinhado a FHC, depois votou no PT por uma questão econômica, depois mudou diante da desconstrução do PT na ordem moral.
Diante dessas mudanças no perfil eleitoral do campo evangélico, a crise atual pode abalar o prestígio de Bolsonaro com este grupo? O que mudou em relação a 2018?
Bolsonaro vem perdendo em geral. Então, ele também perde no segmento evangélico. Mas acho que é onde ele perde menos. Minha impressão é que militares e evangélicos são os grupos que talvez ele perderia por último. São os pelotões de choque. Em relação a 2018, o que vazou: o primeiro grande corte é a dissociação do bolsonarismo com a Lava Jato. Boa parte do segmento evangélico, principalmente a classe média, que votou em Bolsonaro estava informada pelo antipetismo protagonizado por Moro e Dallagnol. No segmento mais popular, há algo relacionado ao pragmatismo da vida. Tem muita gente decepcionada com a questão da vacinação. Havia tolerância quanto a palavrões, havia justificativa bíblica de que Deus opera por outros, como Ciro (II, Rei da Pérsia), mas isso não se sustenta mais. É uma população que já teve sua fidelidade ao Lula e ao PT, por exemplo. A pergunta é: quem é capaz de recuperar essa parcela?
A manutenção de ministros ligados a igrejas evangélicas e a indicação de um nome com este perfil para o STF são fundamentais para manter o eleitorado evangélico em 2022?
Com certeza. Os ministros são sinalizações e ele faz questão disso, de dizer que o meio evangélico participa das decisões. Damares merece um capítulo especial nisso. Ela está mais quieta, mas trabalha pra caramba. Ela plantou muitas coisas em termos eleitorais e de pauta, lançou redes, articula um discurso por vezes que deixam progressistas sem poder polarizar – falando de violência contra a mulher, por exemplo.
O que significa ter a indicação de um ministro “terrivelmente evangélico” para o STF?
Bolsonaro promete isso desde o início do governo. Quando pôde indicar, o que era importante: garantir a proteção dele e da família. Ele prometeu o evangélico, mas tinha outros compromissos. Acredito que agora acho que ele vai pagar a “dívida”, desde que ele sinta proteção a ele e sua família. Será a coroação de um processo de expansão de quadros burocráticos evangélicos pelo campo jurídico. Isso não é um problema. É um processo de mudança social em que tínhamos uma laicidade, mas muito referenciado pelo catolicismo, que pela metade dos anos 1960 começou a mudar demograficamente. A pergunta não é se a religião vai ter influência agora. Sempre teve. O problema desse “terrivelmente evangélico” não é o evangélico, o problema é ser esse o critério. Se a República é fundada na ideia de que o Estado não pode impor uma marca religiosa e tem que atuar como protetor das liberdades religiosas, o movimento aqui marca o Estado com uma religião. Isso é um problema.
O declínio de popularidade de Bolsonaro põe cristãos em risco de alguma forma? Fala-se de uma ‘cristofobia’. Isso existe?
É um discurso falacioso. Existe uma memória do protestantismo de ser minoria, historicamente, no entanto o protestante está próximo do católico em termos demográficos. Tem evangélico em todo lado. Que papo é esse de cristofobia? É cristão reclamando de liberdade religiosa. Me poupe. Se alguém é perseguido neste País são as religiões afrobrasileiras. O discurso da cristofobia é maroto, de oposição à homofobia. É dizer que qualquer crítica sobre o cristianismo é uma ameaça como se os cristãos estivessem ameaçados. O discurso da minoria perseguida foi defendida pelo (Advogado-Geral da União) André Mendonça no fechamento dos tempos. Esses mesmos que falam que são minoria dizem que são “a maioria cristã”. Quando desagrada, são minoria perseguida, quando querem impor uma moralidade, advogam a posição de maioria.
Há grupos de evangélicos associados à esquerda. Por que, em geral, historicamente este segmento se relaciona mais com a direita?
A história do evangelicalismo no Brasil e uma história branca, vinda com forte influência dos EUA. A gente recebeu a influência americana branca do sul dos EUA, de um campo muito fundamentalista. Aconteceu aqui muitas coisas que iam acontecendo lá, desde a entrada na política nos anos 1970, com o alinhamento a Reagan, a fixação no Partido Republicano, as conexões desse mundo por lideranças, cursos, publicações. É dinheiro.
A busca pelo voto da comunidade evangélica para 2022 está acelerada. Como vê essa “corrida”, que envolve nomes ligados à esquerda como Lula e Ciro?
O PT tenta refazer pontes. Lula se movimenta, se rearticula. Não significa que ele vai conquistar todo mundo. Já Ciro parece ter achado um caminho que é entrar nesta conversa sem as questões identitárias, como aborto, gênero. Ele fala de superação, quase como que na teologia da prosperidade, e fala de solidariedade, que evoca o cristianismo social. É uma aproximação sem ser contraditório ao seu partido.
Qual será o papel do eleitorado evangélico nas eleições de 2022?
É um eleitorado fragmentado. A diversidade deste grupo é cada vez mais explícita, mas de qualquer forma, ainda é um grupo pode ser “alinhado”. É um grupo para o qual você consegue mandar um recado mais geral. Ai está a potência. São 30%, mas se vierem, vêm em bando. É só acertar o discurso. Foram fundamentais em 2018 para Bolsonaro porque além do voto, eles contribuíram em conteúdos e foram caixas de ressonância dos conteúdos da campanha. Foi mais do que votar. Os caras botaram as garras para fora e não se isso vai ter o mesmo fôlego. Haverá, mas acho difícil repetir o tamanho do que foi em 2018.
Foto: Tarla Wolski / Futura Press