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Quando uma sentença supostamente premonitória do Presidente da República pode virar piada de Zé Simão

28 de julho de 2019, 06h59 | Por Carlos Lindenberg

by Carlos Lindenberg

Piadista de primeira linha, o humorista José Simão perguntou neste sábado a alguém, que possivelmente leu a Constituição, se o Brasil morre no final. Uma piada, claro, de fino humor, diria até que de um humor britânico, tamanha a sutileza. Mas José Simão tem razão ao fazer a pergunta se na Constituição o Brasil morre no final. É evidente que ele teria sido mais explícito se perguntasse se no final morre a Democracia – mas aí a piada perderia o objetivo, não seria mais um chiste de humor. A dúvida de José Simão faz sentido por que o que se sente é que a Democracia começa a morrer no país que a reconquistou duramente – inclusive com mortos, feridos e desaparecidos.

Por que não é possível que um presidente da República, eleito pelo voto popular, ainda que que consagrado por cerca de 39,3 por cento dos eleitores – já que os demais votaram em branco( 1,7 %) abstenções ( 21,3 %)  anularam o voto ( 5,8%)   ou votaram no outro candidato, Fernando Haddad ( 31,9 %) – mas o fato é que, eleito pelo voto popular, o presidente da República tenha o desatino de declarar que o jornalista Glenn Greenwald “talvez pegue uma cana aqui no Brasil”. Vamos por partes, como diria, para usar o humor negro cabível neste comentário, “Jack, o estripador”. Que linguagem é essa de “pegar cana”? Definitivamente não é uma linguagem apropriada a um presidente da República, mesmo que se diga que o presidente é um capitão, portanto, tem uma linguagem de caserna, uma linguagem, admitamos, popular. Mas não é uma linguagem apropriada a quem ocupa o cargo mais alto da administração pública. Dir-se-á a seu favor que foi com essa linguagem que ele se elegeu. É verdade, mas não é mais dado ao presidente da República usar esse tipo de expressão para se referir a uma possível – até inimaginável – pena que possa ser aplicada ao jornalista Glenn Greenwald.

Mas o que interessa mesmo não é a linguagem, de resto imperdoável. Afinal pouco mais de um terço dos eleitores o escolheram de forma que, embora já falem em impeachment, não é possível um país conviver com esse tipo de instabilidade. Mas não é a linguagem do presidente que se sobressai neste momento. É a sua incapacidade de imaginar que um cidadão, com as características do jornalista norte-americano, não pode ser preso e “ leve uma cana” antes do devido processo legal – ou seja, o presidente Jair Bolsonaro não tem o direito de adiantar publicamente o seu desejo antes que haja o devido processo legal, isto é, a instalação de um processo – primeiro é preciso que haja crime – depois a sua tramitação até a decisão final em que se leva em conta desde o princípio a presunção da inocência. Isso vale não apenas para o jornalista Glenn Greenwald, mas para todos os cidadãos – mesmo aqueles por ventura alcançados pela esdrúxula portaria assinada na semana passada pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro, para “expulsar” do país aqueles que o governo considerar inconvenientes. Também não basta uma portaria para que isso ocorra e o ministro Sérgio Moro, ex-juiz, deve saber disso, menos ainda com o prazo de 48 horas apenas para o acusado se defender. E esse será mais um caso que irá parar no Supremo Tribunal Federal.

Mas se falava aqui no devido processo legal para tentar entender porque Bolsonaro disse que o jornalista norte-americano, casado com um cidadão brasileiro há 15 anos e com dois filhos legalmente adotados, poderia “pegar uma cana” aqui no Brasil – já excluindo de cara a possibilidade de Glenn Greenwald ser alcançado pela portaria de Sérgio Moro, feita inicialmente para ele,  que desde nove de junho vem publicando pelo site The Intercept Brasil, com repercussão em todo o mundo, notícias vazadas a partir de conversas entre o então juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba e os procuradores da lava jato, com repercussões jurídicas inimagináveis. Pois como assegurou Bolsonaro ontem, revelando uma faceta até então desconhecida, a de jurista, que a portaria do ministro da Justiça não pega o jornalista norte-americano.

E aí voltamos ao devido processo legal. Tanto a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) como a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) condenaram a portaria de Moro, antes mesmo que Bolsonaro dissesse que ela não alcança Glenn Greenwald por verem nela uma ameaça à liberdade de expressão já que, inegavelmente, ela tem uma destinação política, a despeito de sua abrangência. E ao se referir ao devido processo legal, a ABI afirma que “ao ameaçar de prisão um jornalista que publica informações que o desagradam, o presidente Bolsonaro promove e instiga graves agressões à liberdade de expressão”. E a Abraji complementa: “ Sem jornalismo livre, as outras liberdades também morrerão. Chega de perseguição”.

No meio jurídico, a declaração do presidente Bolsonaro também repercutiu muito mal e não foram poucos os que lembraram a sua formação militar e a maneira como frequentemente ele remete a esse período tenebroso da história recente do país (1964 -1985) em que o Congresso foi fechado, milhares de brasileiros foram presos, centenas foram mortos ou estão ainda desaparecidos, ministros do Supremo foram cassados sumariamente, enfim, a lembrança desse período não faz bem à oxigenação da vida democrática que o país pretende viver. E é nesse processo que se inscreve o desejo do presidente Bolsonaro de ver o jornalista Glenn Greenwald “pegar uma cana” aqui. Greenwald, que não comenta de quem recebeu o material ou a fonte que balançou o governo, desequilibrou o raciocínio do presidente da República e levou o ministro da Justiça a uma portaria tão ampla quanto ineficaz , diz apenas que não violou nenhum dispositivo da Constituição Brasileira e cita, em sua defesa, o artigo quinto que diz o seguinte: “É expressamente assegurado a todos o acesso à informação e o resguardo do sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”.

É no sigilo da fonte quando necessário ao exercício profissional que se apega em sua defesa o jornalista norte-americano. E não só ele como tantos outros, já que essa é uma cláusula pétrea da Constituição. Uma discussão que se trava nos bastidores dessa operação da Polícia Federal que prendeu quatro supostos hackers de invadirem as contas de autoridades diversas e de mais mil outras pessoas é sobre a responsabilidade de quem vazava para a imprensa – portanto também de maneira ilegal – as informações dos processos que corriam em segredo de justiça na época da lava jato. Ainda recentemente em entrevista à Globonews o ministro Gilmar Mendes dizia que o ex-procurador geral da República, Rodrigo Janot, era um dos que mais vazavam notícias para a imprensa, o que teria provocado, a par disso, há poucos dias o comentário de um apresentador da TV Bandeirantes de que se Glenn Greenwald for preso como disse o presidente Bolsonaro “todos nós vamos ser presos também”, numa manifestação de que o jornalismo brasileiro vive atualmente do vazamento de inquéritos supostamente sigilosos – aliás, para não ir longe, o que a imprensa vem divulgando ultimamente sobre esse caso é tudo produto de vazamentos supostamente de processos que correm em segredo de justiça. Então, como disse o apresentador da Band, de fato muita gente vai ser presa – se é esse o desejo de Jair Bolsonaro para o caso de Glenn Greenwald, numa inacreditável antecipação do que poderá ocorrer com o jornalista norte-americano e numa antevisão do humorista José Simão ao perguntar a alguém que teria lido a Constituição se no final o Brasil morre. Pode até não morrer, mas já padece de grave doença.

Foto: Reprodução/Instagram

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