Por Headline
s mentiras torrenciais ditas por “populistas” parecem inesgotáveis, escreveu Catherine Fieschi em sua coluna para o The Guardian. A politóloga, especializada em política comparada, dedica-se ao estudo do “populismo”. Entre os populistas ela inclui políticos como Marine Le Pen, Donald Trump e Matteo Salvini. Sobre Salvini ela cita a música de Meghan Trainor, Lips are Movin, que diz “if your lips are moving, then you’re lyin”, se seus lábios movem, você está mentindo. Pode-se dizer de Bolsonaro o mesmo, se os lábios dele movem, ele mente.
Bolsonaro usou a mentira como método durante todo seu governo e continua a fazê-lo. A Operação Venire, que investiga a fraude em carteiras de vacinação, inclusive de Bolsonaro, mostra que ele mente, até quando aparentemente diz a verdade. É uma versão falsificada do paradoxo da mentira extensamente estudado na filosofia.
Bolsonaro diz “eu não me vacinei” e sua carteira de vacinação a ser eventualmente apresentada à imigração nos Estados Unidos, pode ter registrado que ele tomou duas doses da vacina. Se é verdade que não se vacinou, transforma-a em mentira ao adulterar a carteira. Se, vacinou, mente ao dizer que não vacinou. Se não se vacinou e há uma cópia de sua carteira de vacinação dizendo que se vacinou, cometeu crime de falsificação de documento oficial e falsidade ideológica. Se permitiu que a carteira de vacinação da filha menor de idade fosse fraudada também cometeu crime de corrupção de menores.
Um exame detalhado do comportamento de Bolsonaro como governante mostra que ele cometeu uma série de crimes. Alguns deles, os menores até agora, começam a aparecer na ponta das várias investigações que saem do inquérito guarda-chuva sobre as fakes news, de relatoria do ministro Alexandre de Moraes do Supremo Tribunal Federal.
Cada trilha que se abre, traz à luz uma fieira de mentiras e provas de crimes cometidos por Bolsonaro. Hannah Arendt nos alertou para a possibilidade de que a massa do povo atingisse um ponto em que pensaria que tudo era possível e nada era verdade.
Ela se referia à mentira totalizante, do tipo daquela que ficou conhecida como a “Grande Mentira”, a estratégia de propaganda de Hitler e Goebbels. Hitler acreditava que as massas populares acreditariam mais em uma grande mentira do que em um pequena mentira. Goebbels desenvolveu minuciosamente as técnicas de propaganda que permitiram a Hitler disseminar sua grande mentira, uma mentira única, totalizante, abrangente.
Os novos demagogos de extrema-direita, que Fieschi agrupa entre os populistas, não conseguem conceber uma “Grande Mentira”. Estamos em uma era em que as grandes ideologias desmancharam-se no ar com o vento da história. Incapazes de uma grande mentira, recorrem a uma torrente de mentiras rotineiras na esperança de que pelo volume façam o mesmo efeito e capturem a crença das massas. Têm conseguido fanatizar um séquito numeroso, mas raramente majoritário. Quando conseguem formar maioria, esta se dissipa rapidamente, diante de sua incapacidade de concretizar as promessas contidas em sua mentiras.
Submundo
A operação Venire revela ligações perigosas e promíscuas entre Bolsonaro e uma rede de militares e policiais militares. No capítulo militar, há gravidade porque se trata de uma organização hierárquica e dificilmente tantos oficiais e suboficiais agiriam com tanta desenvoltura e progrediriam na carreira fora do olhar e sem a anuência, no caso da carreira, do alto comando.
O caso mais sintomático é do coronel Mauro Cid, parceiro de Bolsonaro em várias ações sob investigação, como a do contrabando de joias e a de adulteração de cartões de vacinação. Ele quase foi promovido a posto de comando de tropas especiais, não fosse a transição de governo. Além de comparsa, o coronel Cid é da intimidade do cotidiano de Bolsonaro no governo e depois que Bolsonaro foi apeado da presidência.
Há um capítulo brumoso nessa rede de Bolsonaro que a liga ao submundo da política do estado do Rio de Janeiro. Foi a este braço, no qual há milicianos e políticos corruptos, que o coronel Cid recorreu para obter a fraude no cartão de vacina de Bolsonaro e de outras pessoas, inclusive sua filha menor.
Os documentos que levaram à autorização da operação agora mostram evidências robustas de falsificação de cartões de vacinação. O ministério da Saúde já verificou e informou que o sistema do SUS não sofreu invasão externa e que todas as atividades são rastreáveis. Isto significa que essa rede operada pelo principal auxiliar de Bolsonaro conseguiu ir por dentro do sistema para conseguir os documentos falsos.
A trama vai se revelando a cada passo das investigações, mostrando uma teia de crimes, mentiras e acobertamento cujos nexos vão surgindo. Entre os investigados pela Polícia Federal nesta operação sobre fraude sanitária estão o ex-vereador Marcelo Siciliano e Ailton Barros, preso na operação, que foi candidato derrotado pelo PL de Bolsonaro a deputado estadual. Os dois estão ligados ao caso ainda sem solução do assassinato da vereadora Marielle Franco. Ailton Barros teria dito à Polícia Federal saber quem mandou matar Marielle, segundo nota no Metrópoles.
Esta perigosa conexão com o submundo da política e das milícias do Rio de Janeiro pode complicar seriamente a vida de Bolsonaro e destampar vasos comunicantes que levem a novas investigações.
É pouco provável que a carreira política de Bolsonaro sobreviva a todos os inquéritos que o envolvem. Tudo indica que, pelo que circula pelos corredores do poder e do sistema judicial, são tantas as provas que se acumulam contra ele que é difícil imaginar que escape da condenação em alguns desses inquéritos. Provavelmente, a primeira delas o tornará inelegível.
Organização criminosa “figital”
A retirada do sigilo da Operação Venire pelo ministro Alexandre de Moraes mostra indícios fortes de existência de uma uma rede bem mais ampla, envolvendo outras pessoas além daquelas mencionadas nas primeiras notícias.
Segundo os altos, “no transcorrer das investigações, ficou evidenciado que não se tratava de um mero concurso de agentes para a prática de um crime específico. Os dados encaminhados pelo Ministério da Saúde revelaram que a estrutura criminosa (…) se protraiu no tempo, passando a ter a adesão de outras pessoas, criando-se uma associação sólida, estável e permanente para, de forma reiterada, praticar crimes”.
Essa rede era “figital”, articulava-se no plano digital, nas plataformas, para disseminar as mentiras, e se projetava no mundo físico para realizar seus crimes. “A investigação identificou inicialmente esse modus operandi no mundo virtual, nas redes sociais, onde seus integrantes promoveram/ promovem ataques para pavimentar o caminho para alcance dos objetivos traçados (ganhos ideológicos, político-partidários e financeiros). Os elementos informativos ora apresentados revelaram o processo de materialização no mundo real dos objetivos da associação ora investigada, transbordando sua atuação para além da esfera virtual”, diz a decisão do ministro Alexandre de Moraes, autorizando a busca e apreensão na casa de Bolsonaro e determinando as prisões de seus auxiliares.
*Sérgio Abranches é sociólogo, cientista político e escritor. É autor de “Presidencialismo de coalizão”.
Foto: Daniel Marenco/Headline