Publicado originalmente no “Blog do Moisés Mendes” – É romântica, altruísta e algumas vezes oportunista a conversa de que a tragédia que destrói o Rio Grande do Sul pode unir os diferentes na polarizada política brasileira. Mas que diferentes?
O jornal Le Monde, com a desculpa do distanciamento francês, fomentou essa ideia entre as esquerdas e ganhou até manchete no Brasil. A direita também espalhou seu espírito conciliador, que deve provocar gargalhadas na extrema direita.
A ideia parte da premissa de que urgências propiciam aproximações de médio e longo prazos. Mas é ingênuo e politicamente pueril pensar que, no caso gaúcho, isso seja fácil ou possível.
É simplório pensar que só as reflexões sobre as questões macroclimáticas serão suficientes para levar à compreensão do que aconteceu no Rio Grande do Sul. É bobinho achar que um especialista em clima de Maceió ou um jornalista do Le Monde entenderão, em sua amplitude e em suas particularidades, a tragédia gaúcha.
Porque são as especificidades locais que explicam boa parte do que acontece de danos materiais e perdas humanas, para muito além das macroquestões envolvidas em abordagens ambientalistas.
O que acontece no Rio Grande do Sul é resultado não só de descaso, de negacionismo ou de ignorância. É a colheita trágica de ações destrutivas. Deliberadamente destrutivas. Planejadamente destrutivas.
Há racionalidade na destruição. O entreguismo do tucano Eduardo Leite no governo do Estado e do emedebista Sebastião Melo na prefeitura de Porto Alegre aperfeiçoaram o neoliberalismo. O poder no Rio Grande do Sul é hoje suporte político das muitas faces da extrema direita.
Leite destruiu a legislação ambiental do Estado, no segundo ano do primeiro governo, e avalizou em 2024 mudanças nas leis aprovadas pela Assembleia Legislativa, dominada pela direita e pelo bolsonarismo, que tiram do Estado o poder de vigiar áreas sob proteção ambiental.
Como preposto dos predadores, Leite destruiu a legislação que trata de águas, bichos e solo e ainda sabotou toda a estrutura da Defesa Civil. Vou repetir aqui o que escrevi em artigo na semana passada, depois de examinar o programa de governo de Leite para o segundo mandato.
Não há no documento, registrado no TSE, uma linha sequer, uma só, sobre meio ambiente. Porque o agro pop gaúcho, que se impõe, é tão reacionário, agressor e egoísta quanto o agro do centro-oeste.
Eduardo Leite foi reeleito em 2022, enfrentando Onyx Lorenzoni no segundo turno, porque a maioria do PT e das esquerdas o escolheu, para evitar a ascensão do candidato do PL e ex-ministro de Bolsonaro ao poder. Dias depois de salvo pelas esquerdas, Leite foi ao congresso do MBL em São Paulo.
Sebastião Mello usa as mesmas estruturas da extrema direita que elegeram Leite em 2018. Era um centrista do MDB, que andou na direção de Bolsonaro e adotou as posições do novo líder.
Patrocina ações políticas destrutivas da ocupação urbana da cidade. E sabota o Departamento Municipal de Águas e Esgotos (Dmae), que deveria ter gerido a crise hídrica provocada pela invasão do Guaíba.
Nada funciona em Porto Alegre na área decisiva administrada pelo Dmae. Não funcionam a contenção das águas, a drenagem e nem o abastecimento de água potável. Hoje, o morador de Porto Alegre não tem água para beber.
No verão, em situações normais, o Dmae destruído por Melo não consegue garantir o abastecimento de água para a Lomba do Pinheiro, um dos bairros mais populosos de Porto Alegre.
Mas em 2022 o Dmae estava liberando R$ 1,7 milhão para uma loja do véio da Havan, na zona norte, para ‘mitigação’ de danos ambientais no entorno da construção da filial. A Havan era compensada por danos no ambiente provocados pela construção do próprio prédio. O TCE mandou suspender o pagamento.
Leite e Melo compartilham nomes e marcas do bolsonarismo. Ambos podem sentar-se à mesa com as mesmas figuras manjadas do fascismo gaúcho e de fora do Estado, que vêm desfrutar das cordialidades do entreguismo.
Compartilharam por um bom tempo, até racharem por brigas por espaços, as mesmas estruturas do bolsonarismo gaúcho. Mas ainda têm interligações de quadros e de representação política, com mandatos, que interferem em seus governos.
Luis Carlos Heinze, o senador que ficou famoso como o negacionista cloroquinista do Rancho Queimado, foi figura importante para formação da base política de Leite no primeiro governo. E o ativismo político da prefeitura tem participação decisiva do MBL.
Leite vendeu a CEEE e a Corsan, as estatais que prestam serviços de energia e de água. Melo está sucateando o Dmae, também com o plano explicitado de vender a companhia a traficantes privados de água e saneamento.
Se for, como sugere o Le Monde, construir pontes com essa gente, Lula estará se sentando com sabotadores do Estado e de quase tudo que o próprio Lula defende e faz. Os dois são destruidores não só das estruturas do setor público, mas do que resta de inspiração de figuras gaúchas históricas.
Sentar-se à mesa com a extrema direita que destruiu o Rio Grande do Sul, com o argumento de abandonar confrontos, seria o equivalente a chamar para conversas, em torno de soluções para a Amazônia, desmatadores, garimpeiros e grileiros da floresta.
Seria pensar na possiblidade de caminhar junto com os criminosos que Bolsonaro protegeu enquanto as gangues da Amazônia matavam yanomamis.
Podem dizer, até nas esquerdas, que é preciso pensar junto agora, na hora da emergência, até porque os fascistas gaúchos são moderados e eleitos.
Sim, podem ser contidos ou disfarçados, alguns com sapatênis, mas sempre subservientes a extremistas. Podem até ser fofos e perfumados, mas são agentes ou cúmplices da destruição do Estado. Que Lula converse com eles e trate da reconstrução do Estado, mas sem se aproximar demais ou buscar afinidades com essa gente.
Lula precisa buscar, com sua sabedoria política, interlocutores que parecem não existir mais na direita gaúcha e brasileira. Deve evitar essa conversa fiada de que é possível caminhar junto com as turmas de Leite e de Melo. Que ande ao lado dos gaúchos que tiveram as vidas destruídas.
Lula deve lembrar sempre que Leite e Melo não foram incompetentes. Não agiram com descaso e tampouco foram negacionistas. Foram e continuam sendo competentes para o que desejam fazer.
Pretendem continuar destruindo legislações e o setor público, sucateando o que for possível e confraternizando com o agro pop e o especulador urbano. A ação de destruição do Estado é um projeto.
Lula também precisa ficar sabendo que nessa segunda-feira, em entrevista ao vivo a William Bonner, no Jornal Nacional, Leite fez um agradecimento esquemático e protocolar a quem vem ajudando o Estado e citou o ‘presidente da República’.
Mas não teve a grandeza de falar o nome de Lula. Não falou por temer a patrulha de quem o sustenta politicamente. Leite não citou Lula por medo da extrema direita. Leite e Melo são capatazes do entreguismo.
Com informações do Diário do Centro do Mundo.
Foto: Ricardo Stuckert/PR.