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O Estado Democrático de Direito e o Projeto Nacional

6 de fevereiro de 2020, 16h17 | Por Redação ★ Blog do Lindenberg

by Redação ★ Blog do Lindenberg

Por Patrus Ananias

O Brasil tornou-se há muitos anos o tema central das minhas leituras e reflexões. O Brasil nas suas múltiplas dimensões: histórica, cultural, artística, econômica, social, esportiva, ambiental.

Os pronunciamentos que fiz nesta tribuna tiveram sempre o Brasil como tema: Brasil: uma nação em busca de si mesma; Brasil: travas e possibilidades.
Lançamos com o apoio e a solidariedade de colegas parlamentares da Câmara dos Deputados e do Senado Federal a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Soberania Nacional.

Aproveitei os últimos dias para redigir um texto intitulado Reflexões sobre o projeto nacional brasileiro. Hoje, nesta tribuna, farei uma síntese da parte introdutória dessas reflexões, focando a questão do Estado.

A nossa grande e querida pátria brasileira, não obstante as suas potencialidades extraordinárias, ainda não se viabilizou plenamente como a pátria mãe gentil de todas as brasileiras e brasileiros. Os indicadores e as desigualdades sociais atestam a nossa assertiva.

Aprendemos com as lições da história que a realização de um projeto nacional em sua dimensão mais ampla e integrada não se constrói fora do Estado. O primeiro desafio que se nos coloca, portanto, é a concepção e a construção de um modelo de Estado que possibilite a emergência do projeto nacional. Projeto nacional este que pressupõe a independência e a soberania do país; o desenvolvimento integrado e sustentável e assegure ao povo, sem discriminações ou privilégios, o exercício dos direitos e deveres da cidadania, que pressupõe, por sua vez, condições humanas e dignas de vida.

O paradigma do Estado Democrático de Direito acolhido pela nossa Constituição é uma notável conquista civilizatória. Temos, de um lado, a presença afirmativa do Estado para garantir os interesses nacionais e o bem comum, proteger e promover os economicamente mais fragilizados, integrar as regiões mais empobrecidas, promover enfim o desenvolvimento com justiça social e respeito ao meio ambiente. De outro lado, a Constituição respeita e promove os espaços abertos à sociedade, às entidades e movimentos sociais, à livre iniciativa das pessoas e famílias.

A Constituição integra os direitos individuais com os direitos sociais, coletivos, difusos e ambientais na perspectiva dos direitos fundamentais, do bem comum e da preservação das fontes da vida. Impõe-se no atual momento histórico uma ação vigorosa e bem articulada de todas as forças políticas, sociais e espirituais comprometidas com esses princípios, valores e normas constitucionais. Eles estão sendo desconstruídos pelos atuais detentores do poder com amplo apoio dos neoliberais, dos que adoram o bezerro de ouro dos nossos tempos: o deus mercado.

Sabemos que o Estado não é neutro e não paira acima dos conflitos presentes na sociedade. Os recursos públicos são duramente disputados. Os grandes empresários, nacionais e estrangeiros, os detentores do capital querem ampliar os seus ganhos; os pequenos e médios empresários, a classe média querem alargar a sua fatia no bolo; os pobres, trabalhadores, agricultores familiares, as comunidades tradicionais querem ter acesso aos bens e serviços que possibilitem uma vida digna. O desafio que se coloca ao Estado Democrático e, assim, ao projeto nacional brasileiro, é possibilitar que esses interesses se manifestem dentro das regras democráticas e que sejam assegurados os direitos básicos dos que foram historicamente excluídos.

Conscientes das limitações e ambiguidades do Estado, aprendemos, entretanto, com as lições da história que não há vida coletiva pacificada fora do Estado, ou com o Estado Mínimo fragilizado, impossibilitado de cumprir o seu papel disciplinador e possibilitador. Quanto mais frágil o Estado, mais frágil a democracia, maior o domínio do poder econômico. É o retorno às relações hobbesianas onde o homem se torna o lobo do homem. É o império da violência explícita ou submetida às normas perversas da dominação econômica.

O setor privado, necessário ao desenvolvimento do país, não reúne as condições necessárias – não é a sua missão! – para pensar e implantar um projeto de nação que transcenda as classes, os interesses imediatos, o tempo e as gerações. O setor privado não pensa o país na sua integridade, considerando as diversidades regionais. O seu objetivo é o lucro, não é o bem comum, não são os valores relativos a uma boa convivência social, valores que fundamentam o sentido da nacionalidade e da pátria.

O Estado cumpriu e cumpre um papel insubstituível na história dos povos e, particularmente, na história brasileira. O Estado é o indutor do desenvolvimento como nos mostra a obra insuspeita de Mariana Mazzucato: O Estado Empreendedor – Desmascarando o mito do setor público vs. setor privado. Além do papel intransferível no campo das obras de infraestrutura e das políticas públicas – educação, saúde, previdência social, segurança pública, assistência social, segurança alimentar, moradia – o Estado assumiu, em face da omissão ou impossibilidade do setor privado, iniciativas estratégicas relativas à pesquisa e ao desenvolvimento científico e tecnológico. No Brasil, o Estado assumiu a produção e distribuição da energia elétrica, as obras viárias – ferrovias e, posteriormente, as rodovias que estão sendo agora privatizadas depois de prontas; bancos para financiar o próprio setor privado. O Estado brasileiro foi responsável pela busca e pelo encontro dos caminhos do petróleo e de tantas outras riquezas naturais.

O Estado sofre hoje duros ataques dos neoliberais que defendem a volta ao século XIX, ao estado pretensamente mínimo, mas sempre atento e forte na defesa dos interesses e privilégios dos poderes econômicos, a permanência do “status quo”. O pretenso Estado mínimo é um estado a serviço dos interesses do mercado e do grande capital.

O projeto neoliberal aponta para essa pretensa fragilização do Estado, mas o que ele busca com determinação é o desmonte das políticas públicas para que sobre mais dinheiro para os interesses dominantes. O Estado é apresentado como um mal, impossibilitador das iniciativas individuais, do empreendedorismo, do mercado. O espaço da burocracia do empreguismo, da corrupção.

Esse processo de desconstrução do Estado, para atender aos interesses do capital e do mercado, foi elaborado com determinação ao longo do tempo: A Escola de Chicago emerge nos anos 1970. Logo após vieram os governos Reagan e Margaret Thatcher, nos EUA e na Inglaterra.

Os neoliberais receberam boa ajuda com o fim da União Soviética e do chamado socialismo real, o desmonte do Muro de Berlim. O estado totalitário como princípio e fim de todas as coisas, não se viabilizou.

Os questionamentos neoliberais não se prenderam e não se prendem ao modelo estatizante mais absolutizado. Eles confrontam com determinação o Estado Democrático de Direito que respeita as leis do mercado, a livre iniciativa e a propriedade privada, mas que busca adequá-las ao projeto e à soberania nacionais, às exigências superiores do direito à vida, ao interesse coletivo, ao desenvolvimento integral do país.

O contraponto a essa onda neoliberal vai exigir de nós, democratas e nacionalistas comprometidos com o bem viver comunitário, uma nova abordagem na concepção do Estado. O paradigma do Estado presente e comprometido com os objetivos mencionados não pode ser abandonado nos vãos da história. Cumpre a nós repensar o Estado e defendê-lo a partir de novos procedimentos.

O Estado no Brasil, para bem cumprir o seu papel inarredável na construção do projeto nacional, precisa colocar-se mais próximo e a serviço das pessoas; impor a si mesmo normas que tornem a administração direta em todos os níveis e poderes, bem como as empresas e fundações públicas e todos os órgãos sob controle ou que usem recursos públicos mais abertos e transparentes. Coloca-se ao Estado o dever de abrir à sociedade as contas e o patrimônio públicos. A administração pública, em todos os poderes e entes federados, além da transparência e rigorosa prestação de contas, deve-se tornar mais austera nos gastos, instalações, salários, contratos.

Este novo modelo de Estado, transparente, mais eficaz, e mais próximo das pessoas e comunidades, sintonizado com as aspirações que permeiam a sociedade, pressupõe novos procedimentos democráticos. À democracia representativa, que deve ser sempre preservada e aperfeiçoada, acresce a democracia participativa, que é a tradução no dia a dia da democracia direta prevista na nossa Constituição. A democracia participativa possibilita o exercício dos direitos e deveres da cidadania, dos direitos políticos, da soberania popular. É o mais eficaz antídoto no combate à burocracia e à corrupção.

Tivemos boas experiências participativas nos governos municipais liderados pelo Partido dos Trabalhadores. Uma delas ocorreu em Belo Horizonte em nosso governo, o governo da Frente BH Popular. Essas boas experiências não se desdobraram nos planos estadual e nacional. Retrocederam no plano municipal.

O desafio, além de retomar as experiências positivas do orçamento participativo, é ir além com o planejamento participativo, abrindo espaços crescentes à participação da sociedade na discussão, aprovação e implementação dos planos plurianuais e das leis de diretrizes orçamentárias, além dos orçamentos anuais. Coloca-se ainda o desafio de abrir espaços à participação popular nos planos e ações setoriais e regionais.

O desafio de levar o planejamento e orçamento participativos aos níveis estadual e nacional encontra uma forte resistência embutida no questionamento: como possibilitar a participação efetiva das pessoas em grandes territórios, em estados e, sobretudo, em um país continental como o Brasil?

A experiência, bem vivida nos governos Lula e Dilma, dos conselhos e das conferências temáticas e setoriais pode ser uma boa referência.

A democracia participativa deve articular-se com outro desafio que também considero essencial à realização do projeto nacional brasileiro: o desenvolvimento territorial e regional. O nosso grande país configura-se em territórios – comunidades tradicionais, regiões geograficamente mais concentradas em função de suas características históricas, culturais, ambientais – e regiões mais alargadas com características igualmente compartilhadas no campo econômico, geográfico, dos recursos naturais e potencialidades de desenvolvimento.

Sem jamais perdemos de vista o projeto nacional, a integração do país, os sentimentos e as prioridades da pátria que transcendem e irmanam territórios e regiões, não podemos olvidar a nossa esplêndida diversidade regional. Bem trabalhadas as nossas diversidades e riquezas regionais cumprirão um papel fundamental no enfrentamento dos desafios que hoje se colocam ao projeto nacional: assegurar o direito ao trabalho e ao emprego digno; possibilitar condições humanas e justas de vida às nossas populações rurais e urbanas com atenção especial às regiões metropolitanas; confrontar a violência.

Nesta perspectiva o desenvolvimento regional torna-se a mola propulsora do desenvolvimento nacional. Ele pode se dar através de ações integradas dos órgãos públicos presentes na região, considerando os três entes federados e os consórcios intermunicipais. A expansão das atividades econômicas existentes e a formação de novos empreendedores podem encontrar fortes estímulos nessas ações integradas e em parcerias com escolas e universidades presentes na região e que podem desenvolver estudos e projetos a partir dos recursos e potencialidades locais e regionais. O apoio às iniciativas privadas deve se estender aos empreendimentos vinculados à economia solidária e ao cooperativismo.

Uma atenção especial merecem as regiões metropolitanas. Não cabe aqui um aprofundamento dessa questão que é das mais urgentes. Alguns pontos fundamentais devem ser pautados: como estabelecer limites à especulação imobiliária e ação das empresas construtoras e assegurar os espaços públicos convivenciais, as áreas verdes, a preservação das nascentes, dos rios, o adequado escoamento das águas e, ao mesmo tempo, como guardá-las para os períodos das secas e das baixas nos reservatórios?

Como assegurar a mobilidade urbana, o transporte coletivo decente e disciplinar o uso do automóvel individual?

Como melhorar a vida dos pobres e trabalhadores nos bairros e comunidades mais distantes assegurando-lhes o acesso aos espaços e às políticas públicas essenciais ao bem viver?

O desenvolvimento regional vinculado à participação das pessoas e ao exercício da cidadania, além das suas notórias vantagens éticas, socioeconômicas e ambientais, possibilita o desenvolvimento das pessoas.

A participação na gestão pública, essencial ao processo de democratização e transparência, possibilita a expansão das consciências e dos corações, tornando as pessoas mais informadas, conscientes e politizadas. A democracia pressupõe pessoas que vivem os valores democráticos na sua vida pessoal, familiar, profissional, nas suas relações comunitárias.

O projeto nacional pressupõe, além das políticas públicas, do desenvolvimento econômico e social, da preservação das nossas riquezas naturais, da nossa biodiversidade; pressupõe, sobretudo, o desenvolvimento cultural, político, ético do nosso povo.

O bem maior de um país é o seu povo. Dele, do povo, emana todo poder. A Constituição, que isso assegura, deve ser posta em prática. Cabe ao povo decidir e construir os destinos do seu país.

A tarefa primeira que se coloca aos que queremos o Estado nacional brasileiro a serviço do nosso povo é derrotarmos e superarmos democraticamente o atual governo que se contrapõe a todos os desejos e compromissos que aqui apresentamos.

*Pronunciamento do deputado federal Patrus Ananias no Grande Expediente da Câmara dos Deputados, em 05.02.2020.

Foto: Humberto Trajano/G1

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