Por UOL/Folha de São Paulo
omeu Zema entrou para a vida pública agarrado a Jair Bolsonaro, a quem declarou apoio em 2018. Liberal do partido Novo, o governador de Minas Gerais nunca escondeu sua simpatia pelas causas da extrema direita. Mas suas semelhanças com Bolsonaro, descobre-se agora, não estão só no campo das ideias. Zema, assim como o ex-presidente, tem um fiel escudeiro militar com quem mantém relações pouco republicanas. O de Bolsonaro chama-se coronel Mauro Cid; o de Zema, Lucas Tadeu Bonaccorsi, capitão da Polícia Militar e ajudante de ordens no Palácio das Mangabeiras. Nos últimos meses, Zema nomeou a irmã e o cunhado de Bonacorsi para cargos no governo e no Judiciário, com direito a polpudos salários.
Em dezembro de 2022, Zema precisava indicar quatro desembargadores para o Tribunal de Justiça de Minas. Eram vagas do chamado quinto constitucional: dos indicados, dois precisavam ser advogados e dois promotores de Justiça. Como de praxe, a seção mineira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) montou uma lista com seis nomes para ocupar as duas vagas destinadas aos advogados e a enviou para o TJ. A partir disso, o tribunal fez uma lista tríplice e a repassou para Zema. Um dos nomes chamou atenção: era a advogada criminalista Daniela Villani Bonaccorsi Rodrigues. Daniela foi a mais votada tanto na lista sêxtupla, da OAB, quanto na tríplice, do TJ. O que chamou atenção é o fato de ela ser irmã mais velha de Lucas Bonnacorsi, o ajudante de ordens de Zema.
Com a lista da OAB em mãos, Zema não hesitou: entre os dois advogados escolhidos por ele, estava a irmã de Bonnacorsi. Desde então, Daniela, formada em direito pela PUC de Minas, bate ponto como desembargadora na 9ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça. Recebe do Estado um salário de 32 mil reais, líquidos. No último dia 7, ela palestrou durante um evento na Cidade Administrativa, em Belo Horizonte, sobre os dez anos da Lei Anticorrupção (12.846/2013). A desembargadora tratou da importância do compliance nas empresas. Foi homenageada e aplaudida pela plateia.
Mas Zema não parou por aí. Em maio, o governador decidiu recriar o cargo de secretário adjunto de Meio Ambiente, extinto por ele no começo de seu mandato, em 2019. Nomeou para a função Leonardo Rodrigues, justamente o marido de Daniela. O cargo tem salário de 32 mil reais, igual o de desembargador. Rodrigues é advogado criminalista, e não consta em seu currículo nenhuma experiência em temas ligados ao meio ambiente.
Daniela e Leonardo mantinham juntos um escritório de advocacia na Avenida Raja Gabaglia, uma das principais de Belo Horizonte. Em abril, fecharam as portas do escritório e extinguiram seu CNPJ. Hoje, vivem com a renda que obtêm do Estado. Juntos, recebem 64 mil reais líquidos por mês.
Ofavorecimento à família Bonaccorsi, embora fira o princípio da impessoalidade que se espera de um gestor público, não é ilegal. A Lei Antinepotismo do estado de Minas Gerais, reformulada pelo próprio governo Zema em 2020, veta apenas a nomeação, para o Executivo, de parentes de até terceiro grau da pessoa que nomeia. Como Leonardo não é parente de Zema, a lei não se aplica ao seu caso. Com Daniela, não há ilegalidade por outro motivo: a Lei Antinepotismo não abrange nomeações do Executivo para outros poderes – no caso, o Judiciário.
Ainda assim, especialistas em administração pública criticam as duas nomeações. “A representação política deve pautar-se pela moralidade e pela imparcialidade. Indicações que visam exclusivamente a beneficiar a si mesmo ou a pessoas próximas, como familiares e amigos, devem ser rechaçadas”, diz Fabiano Angélico, especialista em transparência e integridade no serviço público. “A sociedade não pode aceitar, e a autoridade que fez a nomeação deve explicar suas escolhas.”
“Embora a indicada ao TJ tenha qualificações acadêmicas e profissionais, o vínculo com um assessor tão próximo do governador compromete a impessoalidade da indicação, que é um quesito fundamental para a independência do Poder Judiciário”, explica o diretor da Transparência Internacional, Bruno Brandão. “No caso do secretário adjunto de Meio Ambiente, mesmo a especialização técnica parece faltar. São nomeações que reproduzem velhos maus hábitos da política brasileira e contradizem o discurso de renovação do governador mineiro.”
Curiosamente, o coronel Cid – ajudante de ordens de Bolsonaro – e Bonaccorsi encontraram-se pessoalmente em novembro de 2021, quando Zema e o ex-presidente viajaram aos Emirados Árabes Unidos para participar da Expo Dubai. Bolsonaro levou consigo 69 pessoas, Cid entre elas, a um custo estimado de 3,6 milhões de reais. Zema foi mais modesto: ele e sua comitiva de vinte pessoas viajaram em avião de carreira (o Portal da Transparência de Minas não informa o valor gasto na viagem). Na viagem de volta para o Brasil, Bonaccorsi teve de fazer massagem cardíaca em um advogado que viajava ao lado dele no avião e teve um mal estar, sem consequências mais graves.
Procurada pela piauí, a assessoria de Zema enviou uma nota afirmando que os candidatos da lista da OAB “possuem alta competência técnica”, com “um mínimo dez anos de exercício da profissão e reputação ilibada”, ressaltando que Daniela Rodrigues foi a mais votada pelos seus pares na lista tríplice. A respeito do marido da desembargadora, a assessoria disse que o cargo de secretário adjunto foi recriado para todas as pastas da administração estadual, levando em consideração “a necessidade da estruturação administrativa, a racionalização do uso dos recursos públicos e a capacidade técnica do nomeado, sempre com foco no desenvolvimento do estado e na melhoria da prestação de serviços à população”. Não comentou, no entanto, a falta de capacitação de Leonardo Rodrigues para o cargo.
Por fim, a assessoria alegou que o policial militar Lucas Bonaccorsi “não tem competência para tais nomeações”. A nota não informa se o ajudante de ordens teve influência sobre Zema nas duas indicações. Segundo o governo estadual, “as seleções da desembargadora e do secretário adjunto foram feitas seguindo todos os aspectos inerentes à administração pública”.
A assessoria do Tribunal de Justiça, onde trabalha Daniela, disse desconhecer uma possível interferência do ajudante de ordens de Zema na nomeação de sua irmã. “Não temos qualquer notícia de solicitação do policial militar ou qualquer tipo de interferência nesse processo”, disse o tribunal, também por meio de nota. A assessoria da Secretaria de Meio Ambiente não se pronunciou. A piauí tentou contato com Lucas Bonaccorsi, mas não conseguiu localizá-lo. O espaço segue aberto para eventuais manifestações do PM e da secretaria.
Foto: Zanone Fraissat/Folhapress