Culpar o Ministério dos Povos Indígenas e a Funai pela atual situação na Terra Indígena Yanomami revela, no mínimo, uma enorme incompreensão sobre o funcionamento da operação de socorro aos indígenas e de retirada dos invasores garimpeiros tal qual foi desenhada pelo decreto assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 30 de janeiro de 2023.
Os órgãos comandados por Sônia Guajajara, a ministra dos Povos Indígenas, e por Joênia Wapichana, presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), não têm helicópteros, aviões, barcos, armas de fogo, servidores públicos em número suficiente e recursos orçamentários necessários para cumprir a tarefa. Elas também não têm poder de mando sobre as Forças Armadas, a Polícia Federal e a Força Nacional. Estes foram os três setores responsáveis pelo fornecimento de todo o apoio necessário, incluindo a segurança física, às ações das equipes do Ministério da Saúde, do Ibama e da Funai dentro do território indígena.
Hoje inúmeros pontos na terra Yanomami continuam tomados por garimpeiros com o suporte de invasores fortemente armados. Esse é o ponto central do atual cenário. Sem terem segurança, as equipes de saúde não conseguem ocupar o terreno para que possam providenciar o atendimento à saúde nesses pontos críticos.
O ministro da Defesa se chama José Múcio, um ex-deputado integrante do Centrão que em 2022 chamou Bolsonaro de “um democrata”. O ministro da Justiça se chama Flávio Dino, que vai deixar o cargo para se tornar ministro do STF (Supremo Tribunal Federal). Ultimamente eles têm sido cobrados em público sobre o que está acontecendo na terra Yanomami? Eu não vejo isso acontecer. A propósito do primeiro ano do 8 de Janeiro de 2023, eles deram inúmeras entrevistas à imprensa, mas a palavra Yanomami desapareceu das suas declarações.
“Infelizmente para o povo Yanomami, o 8 de Janeiro nunca acabou. Nos dois casos, a extrema direita mais raivosa e bélica participou, incentivou ou organizou as invasões. Ambos contaram com a complacência das forças de segurança.
Há mais de três décadas funcionam dois pelotões especiais de fronteira do Exército dentro da terra Yanomami. Ao longo dos quatro anos do governo Bolsonaro, porém, o Comando Militar da Amazônia assistiu à invasão do seu próprio território. Garimpos funcionaram a poucos quilômetros das instalações militares. Poucas ações pontuais, sem a capacidade de eliminar a infraestrutura milionária do garimpo, só serviram para maquiar o silêncio dos comandantes militares da região. Inúmeras denúncias das lideranças Yanomami caíram no vazio.
O resultado foi catastrófico. Os números relativos ao governo Bolsonaro são “precários, incongruentes, subnotificados e parciais”, mas sabe-se agora que pelo menos 692 crianças Yanomami com até 9 anos de idade morreram de 2019 a 2022.
Semanas após ter tomado posse, Lula ordenou uma operação de retirada dos garimpeiros e o Ministério da Saúde declarou emergência sanitária na terra indígena. De lá para cá, a desnutrição continuou vitimando os Yanomami, embora em menor número. Há hoje uma presença muito mais expressiva das equipes de saúde dentro do território. Os alertas de novos garimpos desabaram. O governo calcula que mais de 80% dos garimpeiros deixaram o território.
Apesar desses avanços, porém, persistem bolsões de garimpo e outros pontos estão sendo abertos com a chegada de novos invasores. Aviões clandestinos cruzam livremente os céus da terra Yanomami. Persiste a fome, que matou 29 Yanomami de janeiro a novembro do ano passado. A malária continua a níveis insuportáveis.
Ao longo de 2023, os leitores da Pública foram informados, em reportagens e textos das nossas newsletters, sobre o papel das Forças Armadas na operação Yanomami. Reticente, frágil, limitado, reativo, ambíguo. Os indígenas pediram ajuda, mas a mão do Exército não foi forte nem o braço foi amigo. Conforme resumiu à TV Globonews a liderança Yanomami Junior Hekurari, que durante o governo Bolsonaro denunciou a invasão garimpeira por meio de mais de 60 ofícios, “o Exército não deu a mão para a população Yanomami”.
Os problemas começaram ainda nos primeiros dias da operação, quando a ordem de bloqueio do espaço aéreo, a cargo da Aeronáutica, foi dada e postergada pelo menos duas vezes, gerando confusão e passando a mensagem de que não era pra valer. Com o tempo, viu-se que o bloqueio nunca foi plenamente eficaz. A Aeronáutica não conseguiu eliminar os vôos clandestinos que abastecem os garimpos clandestinos.
O diretor de Amazônia da Polícia Federal, Humberto Freire, havia dito em entrevista à Pública que um controle “efetivo” – muita atenção para o efetivo – do espaço aéreo era fundamental para o sucesso da operação de retirada dos garimpeiros. A quem cabe o controle? Às Forças Armadas. Tudo era sabido, tudo foi avisado.
Helicópteros e equipes do Ibama foram alvejados a tiros por garimpeiros. Yanomami morreram pelas mãos de garimpeiros, invasores também foram mortos. Nos bastidores, os militares apresentaram mil argumentos, incluindo supostos limites no decreto presidencial de janeiro de 2023 — questiúnculas burocráticas no contexto de uma emergência humanitária.
O que importa é que os militares se revelaram incapazes de instituir a paz dentro do território. Que vergonha para a nona maior economia do mundo ter Forças Armadas que não conseguem lidar com o quê, dois ou três mil garimpeiros? Se os militares brasileiros não são páreos para esse pequeno contingente humano, imagina numa invasão estrangeira. Adeus, Brasil.
Logo surgiram na Pública as primeiras evidências de que os militares rebarbaram inúmeros pedidos da Funai e do MPI no tema do socorro direto à desnutrição. Recusaram-se a corrigir 46 pistas de pouso dentro da terra indígena, sob o argumento de que não era assunto da alçada militar. Essas pistas ajudariam na logística da distribuição de alimentos e no transporte das equipes médicas.
Demandados a ajudar na distribuição de 5,3 mil cestas básicas por meio fluvial para aldeias Yanomami no lado do Amazonas, os militares passaram quase três meses de enrolação até cobrar da Funai um valor de R$ 1,6 milhão por bimestre para fazer esse trabalho. De nada adiantou a presidente do órgão indígena ressaltar, em ofício à Defesa, “o grave quadro de fome e insegurança alimentar enfrentado por essas populações indígenas nos estados de Roraima e Amazonas”.
Vale lembrar que o Orçamento da União para a área de Defesa aprovado para 2023 foi de R$ 124,4 bilhões (78,2% são gastos com pessoal). A mesma reportagem da Pública revelou que deveriam ter sido distribuídas, até junho passado, cerca de 50 mil cestas básicas na terra Yanomami. O Ministério da Defesa, porém, admitiu a entrega de 23 mil cestas, ou seja, menos de 50% do plano original.
Na semana passada a Pública revelou um outro ofício ainda mais estarrecedor enviado ao Ministério da Defesa pelo “número dois” do Ministério dos Povos Indígenas, o advogado indígena Terena Luiz Eloy. Ele informou que, até novembro, cerca de 40 mil cestas básicas estavam paradas à espera da distribuição aos Yanomami. Comida havia, mas não chegava à boca das crianças.
Por fim, a Pública também agora revela que as Forças Armadas decidiram fechar unilateralmente um posto de suprimento de combustíveis em uma das áreas mais visadas pelo garimpo, a de Palimiú. Em nota, a Defesa disse que o apoio logístico “empregado pelas Forças Armadas se deu de forma emergencial”. O verbo é no passado. Mas a emergência acabou? Claro que não.
São pelo menos cinco os momentos em que os militares falharam: a) deficiente controle do espaço aéreo; b) não distribuição das cestas nas aldeias do lado do Amazonas; c) não correção das pistas de pouso; d) nenhuma reação ao fato de equipes do Ibama e indígenas terem sido alvejados a tiros; e) fechamento do posto de suprimento e declaração de que seu papel na operação acabou.
Lá no começo da operação Yanomami, em fevereiro de 2023, José Múcio disse que havia uma preocupação de não “prejudicar inocentes” e que há garimpeiros que “trabalham pelo seu sustento”. Mas traficantes de crack podem dizer que “trabalham para seu sustento”. Assaltantes de banco também podem dizer que “trabalham para seu sustento”. A lógica de Múcio é que alguns crimes — exatamente, que coincidência, os crimes que atingem os povos indígenas e a Amazônia — podem ser mais tolerados do que outros. Só no ano passado, enquanto Múcio estava preocupado com os garimpeiros inocentes, morreram de desnutrição 29 Yanomami.
Não há descrição melhor para definir o que aconteceu ao longo de 2023 que não seja uma sabotagem de militares contra a autoridade presidencial de Lula. A ordem contida no decreto de janeiro de 2023 não foi nem está sendo seguida. Em 7 de fevereiro de 2023, esta newsletter foi inaugurada exatamente com o tema Yanomami. Intitulada “Operação Yanomami é termômetro do respeito dos militares à autoridade de Lula”, escrevi que as Forças Armadas teriam a oportunidade de “mostrar sua verdadeira cara e expor em atos se apreciam, se condenam ou se toleram o genocídio Yanomami”. A infeliz resposta chegou.
Por Rubens Valente – Agência Pública.
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