Por Folha de São Paulo
A ministra Cármen Lúcia, do STF (Supremo Tribunal Federal), afirmou na noite desta quarta (26) que nós, o povo brasileiro, “não temos o direito de desistir da democracia”, que merece ser preservada e festejada.
“Vamos completar 200 dias do que chamamos de dia da infâmia, o 8 de janeiro. A democracia não foi abalada, o STF não foi abalado”, afirmou a ministra em palestra que integrou o seminário Como Renasce a Democracia, no Sesc Pompeia, na capital paulista.
“A democracia não se abala quando há uma sociedade que não se deixa abalar.”
No evento, com curadoria da historiadora e professora da UFMG Heloisa Starling, Cármen disse que “ditadura é o regime do ódio, democracia é o afeto libertador”.
A ministra associou o conceito de democracia a uma “ideia de construção permanente”, não “algo acabado e pronto”. Daí a necessidade de uma geração depois da outra serem capazes de cultivá-la. “Nós temos o dever de fazer com que o desejo [por democracia] de tantas gerações aconteça.”
De acordo com ela, são três os principais “princípios ativos” de um sistema democrático: a confiança, a responsabilidade e a esperança.
“Para que tenhamos um Estado de Direito, é preciso que eu tenha responsabilidade sobre o outro”, disse. “É necessário que haja relações de confiança na sociedade, especialmente num quadro como o nosso, de tantas desigualdades.”
Nesse momento da fala, Cármen comentou o machismo, que mesmo ela, uma ministra da mais alta corte do país, sente. “O preconceito passa pelo olhar.”
O tom otimista prevaleceu na palestra, mas Cármen Lúcia lembrou nós da Justiça do país. “Somos bons em criar normas, mas ruins para cumpri-las”, disse.
“Todo mundo é a favor da realização de concursos [para o trabalho público], a não ser que se trate do filho, que é sempre um gênio”, comentou a respeito da prática do nepotismo.
No fim da palestra, marcada por histórias da família e de Minas Gerais, estado natal da ministra, ela lembrou “Fullgás”, composição de Marina Lima e Antônio Cícero. “Esta é a hora de abrir os braços e fazer um país”, arrematou.
Para construir uma cultura política
No debate que aconteceu anteriormente no Sesc Pompeia, cujo mote era “Para Construir uma Cultura Política”, o cientista político Miguel Lago comentou um fenômeno que, de certa forma, rearranja os eixos ideológicos como os conhecemos.
Segundo ele, as forças da direita tradicional –cada vez mais próximas das bandeiras da extrema direita, como se viu na recente eleição da Espanha– “estão abraçando uma dinâmica de ruptura enquanto as forças de esquerda assumem uma dinâmica de conservação [dos direitos]”.
São movimentos que contrariam o que se entende habitualmente como esquerda e direita, ou seja, a primeira movida pelas mudanças e a segunda conservadora.
Ainda de acordo com Lago, a direita age dessa maneira porque percebe que a sociedade está mais ligada ao ideário da extrema direita, o que pode representar um risco para a democracia no Brasil e em outros países.
No mesmo debate, a escritora Rosiska Darcy de Oliveira falou sobre a força conquistada por movimentos negros e feministas, entre outros.
“Apesar de tudo isso [as ameaças sofridas pela democracia], esses movimentos são irreversíveis. Não serão esmagados, não vão abrir mão de suas conquistas”, afirmou a autora, que integra a Academia Brasileira de Letras.
Onde está a democracia?
Na terça (25), primeiro dia de seminário no Sesc, a secretária de Ciência e Tecnologia da cidade do Rio de Janeiro, Tatiana Roque, a pesquisadora em planejamento urbano da UFRJ Natália Alves, o jornalista e professor da USP Eugênio Bucci e o urbanista e professor da UFMG Roberto Andrés debateram a partir do mote “Onde Está a Democracia?”.
Bucci ressaltou o perigo que o fanatismo representa para o estado democrático. “Não há esperança fora de uma política democrática, que não está assegurada [no Brasil]”, afirmou o professor. “Se o fanatismo nos engolfa, tudo o que entendemos como civilização será arruinado.”
Segundo ele, “precisamos aprender com os fatos” para escapar do fanatismo. O enfraquecimento da fiscalização ambiental e outros recuos civilizatórios perpetrados durante o governo Bolsonaro devem, segundo ele, ser tratados como verdade factual.
Citando Hannah Arendt, filósofa nascida na Alemanha e radicada nos EUA, Bucci enfatizou a necessidade de preservar a verdade factual, especialmente na seara política.
“Quem é que afere a verdade factual? O repórter, o historiador, o filósofo… A política não pode deformar essas antenas pelas quais nós captamos os fatos”, disse. “Se não for para discutir os fatos, a política se rarefaz. E se não for baseada nos fatos, a liberdade é uma farsa.”
Tatiana Roque lembrou que há na democracia “uma outra temporalidade que não é a das eleições”. No último governo, de acordo com ela, a extrema direita tentou minar a força de instituições que são “intermediárias da democracia”.
Natália Alves e Roberto Andrés discutiram a precariedade democrática no ambiente urbano. Para a pesquisadora, a “gestão racializada dos espaços da cidade”, marcada por “gravíssimas desigualdades”, representa um impacto negativo para a democracia.
A urbanização no Brasil é caracterizada por “um esforço das elites de viver o mais longe possível dos pobres”, diz Andrés.
Para ele, a expansão dos condomínios, distantes das áreas centrais das cidades, a partir da fase final da ditadura militar significou um “movimento histórico de restrição” conduzido pelas classes de renda mais alta.
Segundo Andrés, a democracia se fortalece quando os cidadãos têm condições de circular livremente por toda a cidade. Neste momento da sua fala, o professor defendeu a tarifa zero para o transporte público, modelo seguido por mais de 70 municípios do país.
Foto: Evelson de Freitas/@Sesc no Facebook