Uma carta aberta, redigida por intelectuais, ex-ministros e ativistas, manifesta apoio à decisão do governo Lula de respaldar a ação movida pela África do Sul na Corte Internacional de Justiça da ONU contra Israel.
A iniciativa sul-africana busca investigar as acusações de genocídio perpetrado pelo Estado de Israel contra o povo palestino em Gaza. A entrega do documento está prevista entre a noite de terça (16) e a manhã de quarta-feira (17), destinada ao presidente e ao ministro de Relações Exteriores, Mauro Vieira.
O documento responde às críticas feitas por entidades como a Conib (Confederação Israelita do Brasil), que argumentou que a posição do governo brasileiro desviava dos princípios de equilíbrio e moderação da política externa nacional. O ex-chanceler Celso Lafer — que protagonizou uma cena de submissão patética aos EUA quando tirou os sapatos a pedido da segurança em aeroporto dos Estados Unidos, em 2002 — disse que o Brasil reforçava o “antissemitismo”.
O documento enfatiza que, embora o antissemitismo seja um problema grave e deva ser combatido, isso não impede a condenação do apartheid e do desrespeito sistemático de Israel às decisões da ONU e às leis internacionais de direitos humanos, incluindo a prevenção de genocídio. Destaca ainda a coerência da diplomacia brasileira, ressaltando o compromisso do país com o respeito aos direitos humanos, conforme estabelecido pela Constituição de 1988.
O DCM teve acesso à carta e a todos os signatários:
Carta Aberta de apoio ao Excelentíssimo Senhor Presidente da República Senhor Luiz Inácio Lula da Silva e ao Excelentíssimo Senhor Ministro de Estado das Relações Exteriores, Embaixador Mauro Vieira
17 de janeiro de 2024
O governo da África do Sul apresentou, em 29 de dezembro passado, uma petição à Corte Internacional de Justiça da Organização das Nações Unidas (ONU), em Haia, órgão com 15 juízes que julga disputas entre Estados, com o apoio de 67 países, inclusive o Brasil. A petição acusa o Estado de Israel de descumprir a Convenção de Prevenção e Punição do Genocídio de 1951.
No dia 10 de janeiro, em uma nota do Ministério das Relações Exteriores, o presidente da República relatou os esforços e ações que seu governo tem feito em inúmeros fóruns, em prol do cessar fogo, da libertação dos reféns e da proteção da população civil em Gaza. Destacou ainda a atuação incansável do Brasil no exercício da presidência do Conselho de Segurança para promover uma solução diplomática para o conflito.
À luz da continuidade de flagrantes violações ao direito internacional humanitário em Gaza, o presidente Lula manifestou seu apoio à iniciativa da África do Sul de acionar a Corte Internacional de Justiça, para que determine que Israel cesse imediatamente todos os atos e medidas que possam constituir genocídio ou crimes relacionados nos termos da Convenção de Genocídio.
A decisão do presidente da República suscitou críticas como a alegação de uma suposta falta de coerência da diplomacia brasileira ao apoiar a ida à Corte, que foi considerada em discordância com a política externa de equilíbrio entre Israel e a Palestina, e teria por objetivo a deslegitimação de Israel quebrando a irmandade(sic) com o povo judeu, reforçando o antissemitismo.
Não há incoerência alguma na diplomacia brasileira. Essas críticas ignoram que o Estado brasileiro tem se guiado, nas relações internacionais, pela primazia do respeito aos direitos humanos, conforme o artigo 4º da Constituição de 1988. A política externa brasileira sob a constitucionalidade democrática sempre respeitou a primazia das normas internacionais e das decisões de órgãos multilaterais.
Qualquer referência à crise em Gaza deve ser examinada, como asseverou recentemente o secretário–Geral da ONU, no contexto da história das relações entre Israel e o povo palestino. A manutenção da equidistância nas relações do Brasil advém da situaç ão das duas partes do conflito, sob o ângulo das obrigações do Brasil em face da legislação internacional: o Estado de Israel, como potência ocupante, e a Palestina ocupada, submetida a anos de apartheid, 56 anos de ocupação militar e a 16 anos de bloqueio em Gaza.
Muitas críticas apontam que o processo na Corte deixa de lado o exame dos ataques do Hamas em 7 de outubro. Porém, o Hamas não pode ser parte em um processo perante a Corte Internacional de Justiça, que examina apenas disputas entre Estados. A Corte examinará a defesa de Israel, que culpa o Hamas pelas mortes de civis e não pela sua própria conduta. Em qualquer hipótese, o órgão judicial que pode penalizar os crimes de guerra do Hamas é o Tribunal Penal Internacional (que investiga e processa indivíduos), mas Israel impediu o procurador do Tribunal de entrar em Gaza diante do risco de que ele pudesse investigar e processar autoridades oficiais de Israel.
A acusação de reforçar o antissemitismo faz parte da campanha de instrumentalização política do termo, ao considerar qualquer crítica ao Estado de Israele seu governo como antissemita. O antissemitismo é um flagelo perigoso e deve ser combatido vigorosamente. Mas não significa ser antissemita condenar o apartheid e o desrespeito sistemático, por Israel, das decisões dos órgaõs da ONU e de leis internacionais humanitárias e de direitos humanos, incluindo a não prevenção de genocídio. Conforme observado pela Declaração de Jerusalém e pelo The Nexus Document sobre antissemitismo, equiparar falsamente antissemitismo com crítica a Israel prejudica a importante luta conta o antissemitismo.
Lamentavelmente todas essas críticas hipócritas à decisão do governo em cartas jactanciosas, editoriais, avalanche de notas na mídia social não levam em conta natureza, âmbito e extensão dos ataques militares de Israel a Gaza, com um bombardeio contínuo durante 100 dias em uma das regiões mais densamente povoadas do mundo, forçando a evacuação de 1,9 milhão de pessoas (85% da população de Gaza) de suas casas, deslocadas para áreas cada vez mais exíguas, sem abrigo adequado, onde continuam a ser bombardeadas, mortas, feridas e privadas de necessidades básicas para sobrevivência. Os ataques já mataram mais de 23 mil palestinos. Gaza se transformou em um cemitério de mais de 10 mil crianças, com milhares de feridos com amputações sem anestesia, desaparecidos, supostamente enterrados sob os escombros. Foram mortos 82 jornalistas, muitos com suas famílias extensas. Mais de 150 funcionários da ONU foram mortos, mais do que em qualquer outro conflito nos 78 anos de história da organização.
Israel destruiu vastas áreas de Gaza, incluindo bairros inteiros, danificou ou destruiu mais de 355 mil casas palestinas, terras agríco las, padarias, escolas, quatro universidades, empresas, mesquitas e locais de culto, cemitérios, sítios culturais e arqueológicos, serviços municipais e instalações de água e saneamento e redes de eletricidade, sistema médico e de saúde palestinos. Israel continua a reduzir Gaza a escombros, matando, ferindo e destruindo a população e criando condições de vida que a petição da África do Sul alega serem calculadas para a destruição física dos palestinos como grupo étnico e nacional.
Os aqui abaixo assinados apoiam o governo democrático do Brasil e concordam com a decisão tomada pela diplomacia brasileira junto à Corte Internacional de Justiça. Nesse sentido, apoiamos o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e o ministro de Estado das Relações Exteriores, embaixador Mauro Vieira.
Paulo Sérgio Pinheiro, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos;
Kenneth Roth, ex-diretor-executivo da Human Rights Watch;
Embaixador José Maurício Bustani, ex-diretor-geral da Organização para Proibição de Armas Químicas;
Juan E. Mendez, ex-assessor especial do Secretário-Geral da ONU para a Prevenção do Genocídio;
Fabio Konder Comparato, professor emérito da Faculdade de Direito da USP;
Embaixador Tadeu Valadares, ex-diretor do Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais, Ministério das Relações Exteriores;
James Cavallaro, ex-presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA);
Marilena Chaui, professora emérita da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP;
Paulo Vannuchi, ex-ministro de Direitos Humanos;
Reginaldo Nasser, professor de Relações Internacionais da PUC-SP;
Rogerio Sottili, ex-ministro de Direitos Humanos;
Luiz Carlos Bresser Pereira, ex-ministro da Fazenda, ex-ministro da Administração Federal e da Reforma do Estado;
Embaixador Eduardo Roxo;
Luiz Eduardo Soares, antropólogo e escritor, ex-secretário Nacional de Segurança Pública;
Nilma Lino Gomes, ex-ministra da Igualdade Racial;
Embaixador Francisco Alvim;
José Luiz Del Roio, historiador e ex-senador da Itália;
Ideli Salvati, ex-senadora, ex-ministra de Direitos Humanos;
Milton Hatoum, escritor;
Eleonora Menicucci De Oliveira, ex-ministra de Políticas para as Mulheres;
Breno Altman, jornalista;
Salem Nasser, professor de Relações Internacionais da FGV-Direito;
Pepe Vargas, deputado estadual do Rio Grande do Sul e ex-ministro de Direitos Humanos;
Laura Greenhalgh, jornalista;
Maria do Rosario, deputada federal e ex-ministra de Direitos Humanos;
Maria Victoria de Mesquita Benevides, professora emérita da Faculdade de Educação da USP;
Bruno Huberman, professor de Relações Internacionais da PUC-SP;
Com informações do Diário do Centro do Mundo.
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