Por G1
No mesmo mês em que conseguiu avançar a tramitação do novo arcabouço fiscal, principal projeto da área econômica para este ano, o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) enfrentou pelo menos cinco derrotas de grande escala na Câmara dos Deputados.
O cenário confirma uma previsão que analistas já faziam antes mesmo do segundo turno das eleições – de que o presidente, fosse Lula ou Bolsonaro, teria dificuldades em lidar com um Congresso dividido, polarizado e sem maioria clara.
A dificuldade de articulação, no entanto, põe em xeque um clichê que se popularizou em Brasília: o de que haveria uma “lua de mel” entre governo e Congresso nos seis primeiros meses de um mandato, quando o capital político do presidente recém-eleito facilitaria a aprovação de projetos.
No texto abaixo, o g1 explica as quatro principais derrotas do governo em votações na Câmara neste mês. Desses quatro, três ainda passarão pelo Senado, e um seguirá para a sanção ou veto de Lula. Compõem a lista:
- o decreto de Lula com mudanças no marco legal do saneamento básico;
- a MP do governo Jair Bolsonaro que passou a afrouxar regras de preservação da Mata Atlântica;
- o projeto de lei que define um “marco temporal” para a demarcação de terras indígenas;
- e a medida provisória do governo Lula que reorganizou a Esplanada dos Ministérios no início do mandato.
A lista inclui apenas temas que já tramitam no Congresso e foram votados pela Câmara. Há outros assuntos, no entanto, para os quais já há discordância pública – e cujos desdobramentos podem exigir maior articulação do Executivo:
- a CPI do MST, instalada na Câmara e comandada por parlamentares de oposição ao PT e a Lula;
- a decisão técnica do Ibama, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, de negar licença à Petrobras para fazer perfurações em uma área marinha, no litoral do Amapá, para pesquisar o potencial de exploração de petróleo e gás na região;
- a ação enviada ao Supremo Tribunal Federal (STF) pela Advocacia-Geral da União (AGU) para questionar pontos da privatização da Eletrobras, aprovada pelo Congresso na legislatura passada.
Veja, abaixo, detalhes sobre as quatro principais derrotas, o que está em jogo e os próximos passos em cada tema:
Marco do saneamento
Logo no começo do mês, a Câmara votou para derrubar trechos de dois decretos editados por Lula em abril para mudar regras do marco legal do saneamento básico, aprovado pelo Congresso em 2020.
A derrota do governo foi expressiva: 295 votos a favor da derrubada de parte dos decretos e 136 contra. Até deputados do MDB e do PSD, que possuem cargos no primeiro escalão, votaram com a oposição.
A Câmara derrubou dois trechos:
- a permissão para que empresas contratadas para obras de saneamento comprovassem a saúde financeira até 2025, por meio de contratos provisórios, não formalizados ou até irregulares. O prazo fica mantido, mas apenas contratos regularizados podem ser usados.
- a autorização para empresas estatais prestarem serviços de saneamento sem licitação em regiões metropolitanas. Pelo marco legal, as estatais têm que competir com o setor privado em condições de igualdade para novas contratações.
Naquele momento, líderes partidários da oposição disseram ver os decretos de Lula como uma “agressão” ao Congresso Nacional. Para esses políticos, o governo estaria tentando contornar o processo legislativo ao mexer em leis aprovadas pelo parlamento usando decretos.
“Por meio de decretos presidenciais, se quer alterar uma lei que foi votada pela Câmara Federal, pelo Senado da República e sancionada pelo presidente da República. Uma lei de grande interesse público, de interesse popular”, disse o deputado Mendonça Filho (União-PE).
À época, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), também disse em uma rede social que o Congresso não aceitaria “retrocessos”.
As alterações nos decretos de Lula ainda serão analisadas pelo Senado. Até lá, ficam valendo as regras editadas pelo presidente da República.
MP da Mata Atlântica
Em 24 de maio, a Câmara dos Deputados manobrou para reverter uma decisão que o Senado, com o apoio de governistas, havia tomado na semana anterior. No centro do debate, estão regras que afrouxam a preservação da Mata Atlântica.
As idas e vindas envolvem uma medida provisória editada ainda no fim do governo Jair Bolsonaro e que, inicialmente, tratava apenas do Cadastro Ambiental Rural (CAR), obrigatório para propriedades rurais.
Em março, ao votar o tema pela primeira vez, a Câmara tinha incluído no texto uma série de mudanças nas regras de fiscalização da Mata Atlântica. Entre elas, a dispensa de compensação para desmatamento fora das áreas de preservação permanente e a flexibilização do desmate de vegetação original.
O texto foi enviado ao Senado e, em votação no último dia 16, esses trechos foram “impugnados”. Isso significa que os senadores, além de rejeitarem as mudanças, consideraram que as propostas eram inconstitucionais e não poderiam ser reanalisadas.
A Câmara ignorou essa decisão e o regimento do Congresso. A impugnação foi tratada como uma “emenda supressiva” e, com isso, os deputados restauraram em nova votação essas medidas que afrontam a proteção ambiental.
O placar, neste caso, também deu ampla maioria contra a posição do governo: 364 votos para restaurar as modificações da Câmara, e apenas 66 contrários.
Como já tinham passado pela Câmara e pelo Senado, as mudanças feitas na medida provisória seguiram para a sanção do presidente Lula. Senadores questionaram o rito da aprovação da Câmara em uma ação no Supremo Tribunal Federal.
O ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, afirmou em entrevista à GloboNews que as mudanças serão vetadas por Lula. Se isso se confirmar, os vetos voltam à análise do Congresso – mas só são derrubados se houver maioria de deputados e senadores para isso.
Marco temporal das terras indígenas
Na última terça (30), a Câmara dos Deputados aprovou em plenário, por 283 votos a favor e 155 contra, a proposta que prevê a aplicação do marco temporal na demarcação de terras indígenas.
Na semana anterior, a Câmara também já tinha aprovado com amplo placar – e votos de parlamentares da base – o regime de urgência para o texto.
O projeto afirma que só podem ser reservadas terras que já eram tradicionalmente ocupadas por povos indígenas no dia da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988.
Além da discussão no Congresso, o marco temporal para demarcação das terras indígenas também está em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF).
A Corte avalia uma ação envolvendo uma terra indígena em Santa Catarina, mas a decisão terá repercussão em todos os processos do tipo no país. Na ação, os ministros do STF vão julgar se essa tese do “marco temporal” afronta ou não a Constituição Federal.
O projeto segue para análise do Senado. Caso também tenha o aval da Casa, vai para a sanção do presidente Lula, que pode sancionar ou vetar o texto.
O STF deve manter o julgamento do tema, mesmo com a tramitação no Congresso.
MP dos ministérios
A medida provisória que reorganizou o mapa da Esplanada dos Ministérios foi o primeiro texto assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao tomar posse, em 1º de janeiro.
Com ele, o governo passou a ter 37 ministérios, bem mais que os 22 do fim da gestão Jair Bolsonaro. A lista de novas pastas incluiu o inédito Ministério dos Povos Indígenas, promessa de campanha, e a recriação de ministérios como Pesca e Aquicultura, Desenvolvimento Agrário e Cultura.
A tramitação da medida provisória, no entanto, gerou um acúmulo de derrotas para o governo.
Os problemas começaram já na comissão mista, primeira instância de análise de uma medida provisória no Congresso. Relator do texto e líder do MDB na Câmara, Isnaldo Bulhões (AL) fez uma série de mudanças no texto – que, na prática, esvaziam boa parte das atribuições dos ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas.
As principais mudanças foram:
- demarcação de terras indígenas: sai do Ministério dos Povos Indígenas e vai para o Ministério da Justiça
- Cadastro Ambiental Rural: sai do Ministério do Meio Ambiente e vai para o Ministério da Gestão;
- Saneamento: transfere três sistemas de informações sobre saneamento do Ministério do Meio Ambiente para o Ministério das Cidades;
- Companhia Nacional de Abastecimento (Conab): deixa de ser unicamente do Ministério do Desenvolvimento Agrário e passa a ser gerida pelo MDA e também pelo Ministério da Agricultura.
As mudanças geraram críticas públicas das ministras Marina Silva (Meio Ambiente) e Sônia Guajajara (Povos Indígenas), que disseram ver retaliação do Congresso à promessa de um governo com maior foco na proteção ambiental e na agricultura sustentável.
O impasse levou Lula a convocar as ministras para uma reunião no Palácio da Alvorada na última sexta (26), de onde ambas saíram com um discurso de unificação e apoio à articulação política.
O governo, no entanto, seguiu operando com sinais trocados no tema.
Na tarde da última terça (30), enquanto o ministro Alexandre Padilha (Relações Institucionais) dava entrevista dizendo que o governo queria votar o relatório “do jeito que está”, o líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), afirmou que os líderes da base ainda negociavam ajustes eventuais na proposta.
A desarticulação do apoio político ao governo Lula levou a um novo adiamento do texto. Com isso, até a tarde desta quarta (31), ainda não havia garantias de que a MP fosse aprovada.
O texto perde validade se não for aprovado em definitivo pelos plenários da Câmara e do Senado até quinta, 1º de junho. Se isso acontecer, o governo Lula terá que restaurar o mapa de 22 ministérios deixado por Bolsonaro – e encontrar uma forma de abrigar as pastas restantes como secretarias vinculadas aos ministérios, por exemplo.
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