Por Itatiaia
Recuperar o respeito pela diversidade cultural do Brasil e planejar com responsabilidade governamental o desenvolvimento das manifestações culturais nacionais são as principais urgências do terceiro mandato do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva para o setor cultural. Esta é a opinião do ex-ministro da Cultura Gilberto Gil.
Para o músico, que falou com o Estadão antes de subir ao palco do Teatro Sérgio Cardoso na última quarta-feira, 2, é necessário voltar a tratar a área de forma abrangente, com atenção às origens da identidade brasileira. Ele aponta, por exemplo, as matrizes afro-brasileiras e indígenas.
O cuidado com relação à cultura precisa ser restabelecido, defende Gil. “Porque isso foi sensivelmente prejudicado e perdido nos últimos anos.”
Ele diz que o folclore e a mistura dos povos, característicos do Brasil, são elementos fundamentais da criatividade popular e defende uma retomada no prestígio do que chama de agricultura cultural. “A agricultura simbólica, espiritual, que tem sementes riquíssimas e possibilidades de cultivos extraordinários.”
Como mostrou o Estadão em setembro, o presidente Jair Bolsonaro adiou repasses de quase R$ 7 bilhões das leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2 para 2023 e 2024. Uma manobra para permitir liberar verbas travados do orçamento secreto.
Estrutura de governo
Gil questiona a existência do Ministério da Cultura. No governo Bolsonaro, o MinC foi rebaixado e virou a Secretaria Especial da Cultura. Segundo ele, a estrutura pode não ser fundamental, desde que haja instâncias de governo comprometidas com a articulação das políticas públicas do setor.
Entretanto, indica que a recriação da pasta possa ser positiva em função da tradição. “O sistema cultural brasileiro se acostumou ao relacionamento com essa, digamos assim, autoridade cultural brasileira centralizada”, diz.
Ele descarta reprisar a passagem pela Esplanada. E não arriscou um nome para assumir a função numa eventual recriação. “Não tenho nenhum porque teria pelo menos dez”, afirma.
Mais música, menos política
Gil aponta que, embora extenso, superpopuloso e detentor de uma diversidade cultural vasta, o Brasil ainda arca com a carência de acesso a expressões culturais. “Há carências de acessos a todos os tipos de riqueza no Brasil. A de acesso à arte está associada às carências gerais do País.”
Apesar disso, ele não menciona o governo Bolsonaro, à frente da gestão nos últimos quatro anos. Nem mesmo quando, durante o Festival Música em Movimento, na quarta-feira, 2, um coro contra o presidente foi puxado.
A plateia, na sequência, se manifestou favoravelmente ao presidente eleito e Gil se limitou a um comentário ligeiro e bem-humorado ao microfone, a única menção política dele no show. “Gritaram tanto ‘Lula Lá’ que ele acabou indo”, brincou.
80 anos e muitas homenagens: como está sendo viver nessa época da vida e continuar no palco?
Tem o empurrão natural que a vida foi dando, no sentido de ir adiante com um processo de aderência ao mundo, ao campo da sensibilidade musical, em todos os aspectos possíveis dessa dimensão. Um processo que começou na infância ainda, aos oito, nove, dez anos, quando eu comecei propriamente a prestar atenção à música do mundo, o que ela fazia comigo, minha interioridade, meus sentimentos e pensamentos. E tudo o que foi sucedendo pela vida. Só de música profissionalmente são 60 anos. É uma vida toda dedicada a esse mister. Música: talvez a mais sutil, a mais etérea de todas as artes. Essa propagação dos sons organizados no éter. É uma coisa que sensibiliza as pessoas desde crianças, muitas delas acabam completamente seduzidas por isso e se encaminham para o portal que dá entrada a esse universo. Muita gente atravessa essa porta. Foi o meu caso, né. Então, 80 anos de vida.
O senhor tem feito muitos shows e projetos envolvendo a família. O Rock in Rio, a série da Amazon Prime Video, a turnê internacional e essa apresentação hoje… Como nasceu esse impulso de trazer a família para junto dos holofotes, visto que muitos já tinham projetos próprios?
O pressuposto básico é esse de que são meninos e meninas que foram se envolvendo com música ao longo da vida. Por causa de estarem ali. Respiravam o mesmo ar, a mesma casa, mesmos amigos, mesmas frequências… E essa última iniciativa de juntá-los todos foi uma coisa da Preta (Gil). Que sugeriu que levássemos todos para uma viagem pela Europa. Aí as outras dimensões foram se associando. E vieram os interesses de registros, gravação, surgiu uma série de televisão, nesses moldes contemporâneos das séries. Foi Preta que inventou.
Qual o senhor acha que é o papel da cultura no Brasil hoje?
O papel da cultura é muito amplo, muito vasto. Vai desde os empregos variados das línguas, das misturas de línguas, até as misturas propostas pela interracialidade, interetnicidade, pela interculturalidade: no sentido de culturas que migraram, de povos formadores do Brasil e foram formando o Brasil antigo, depois o moderno e agora desembocam no Brasil pós-moderno, que é uma complexidade muito grande. Um País extenso, uma das maiores populações do mundo, todo esse povo unificado numa língua e nas línguas derivadas todas. É uma cultura extensa, muito interessante e importante.
Se você segmenta o campo musical, então, é uma coisa incrível. A música brasileira por essas origens diversas se tornou uma das mais ricas, mais contempladas do mundo, se a gente fala de música popular e não só dela. Se você pensa em (Heitor) Villa-Lobos e tudo o que circunda uma entidade como aquela, produzindo música sinfônica e erudita. Os campos experimentais, os campos propriamente ligados ao folclore, que desembocaram na música popular e deram coisas extraordinárias e extremamente queridas e celebradas pelo mundo inteiro, como a Bossa-Nova e seus grandes criadores e autores. E sucessores da Bossa-Nova, como eu e tantos outros. O envolvimento do povo, os carnavais, as festas religiosas, populares, várias que se manifestam em várias partes do País. Os sotaques variados, europeus mediterrâneos, mais teutônicos, eslavos, africanos profundos, asiáticos, sul-americanos. Então é uma riqueza extraordinária.
Dá para dizer que tem uma carência de acesso à arte no Brasil?
A carência de acesso à arte no Brasil está associada às carências gerais do País. A questão de quem é que tem acesso, quem tem instrumental de formação, quem tem formação estruturada para a fruição, para os variados modos de fruição… Nesse sentido sim. Há carências de acessos a todos os tipos de riqueza no Brasil. O acesso à riqueza cultural é um dos sentidos deficitários da relação povo, sociedade e cultura.
Nesse terceiro governo Lula, qual é a urgência principal que um ministro da Cultura deveria atacar agora?
Retomar uma visão abrangente, holística, diversificada da Cultura brasileira. Respeitosa com as tradições, mas absolutamente aberta e sensível aos processos inovadores, renovadores, as transformações. Um dos segmentos mais criativos nesse sentido da inovação no Brasil – não só no Brasil, no mundo todo, mas no Brasil em especial – é a cultura popular. Então a retomada disso, num nível de prestigiamento e respeito que essas coisas merecem, a esse cultivo dessa cultura. Quero dizer, para além dos cultivos agrícolas e etc, é preciso criar dessa agricultura simbólica, dessa agricultura espiritual, que tem cultivares importantíssimos, sementes riquíssimas no Brasil, possibilidades de cultivos extraordinários. Enfim, acho que precisa é isso.
Não é necessariamente nem a existência de um Ministério da Cultura, mas de uma instância de governo que articule, dentro das estruturas de governo central e estaduais e municipais esse tipo de reverência à riqueza da música popular. Se o ministério facilita isso, no sentido das obrigações que o governo central teria que ter em relação a tudo isso, melhor que seja recriado.
O sistema cultural brasileiro todo se acostumou ao relacionamento com essa, digamos assim, autoridade cultural brasileira centralizada e descentralizada pelos estados e municípios. Essa responsabilidade governamental em relação à cultura e às considerações para com ela. Enfim, é isso que precisa restaurar porque isso foi sensivelmente prejudicado e perdido nos últimos anos.
O senhor vê um nome que pudesse assumir essa pasta e se ela existisse o senhor voltaria?
Eu não. Não tenho nenhum, porque teria pelo menos dez. E como só vai ser possível ser um, né…
Se o senhor pudesse dar um recado para esse ministro, o que diria para fazer?
Atenção profunda, respeito à diversidade cultural, às várias fontes de produção cultural do País. Às várias matrizes propiciadas por essas fontes. A consideração profunda à diversidade de origens da cultura brasileira. Uma apreciação, um aumento do preço, do valor, de vários aspectos da cultura brasileira, como por exemplo o aspecto afro-brasileiro, o aspecto indígena brasileiro. O respeito histórico pela formação do Brasil e atenção profunda ao processo de encaminhamento da cultura brasileira em direção ao futuro. É isso.
Os que forem lá se incumbir das atividades, das gestões, do estabelecimento das melhores relações entre o Estado e a sociedade, entre os governos e a sociedade, para essa manobra toda da vida cultural, eu espero que saberão cumprir suas tarefas e seus deveres.
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