Um leão dentro da jaula. Essa é a imagem que um amigo próximo escolhe para descrever o atual estado de espírito do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Por Estado de Minas
“Ele ficou confinado lá em Curitiba mais de 500 dias. Depois vem a pandemia, fica confinado em casa. Vai para Cuba, pega covid, fica confinado em Cuba”, diz esse amigo.
“Ele não aguenta mais o confinamento, está louco para ver gente. Ele é o tipo de ser humano para quem o contato com as pessoas é essencial. Está louco para tomar a vacina, para poder voltar a ter mobilidade”, conta o confidente, que prefere falar sob anonimato, pois afirma não ter a pretensão de ser um “intérprete” do ex-presidente.
Diante da expectativa de retomada do julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a suspeição do ex-juiz da Lava Jato Sergio Moro no caso do tríplex do Guarujá, a BBC News Brasil ouviu nos últimos dias seis pessoas próximas ao ex-presidente.
Entre elas, estão o ex-presidente e atual diretor do Instituto Lula, Paulo Okamotto; o senador Jaques Wagner (PT-BA); o deputado federal e ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha (PT-SP) e o advogado Cristiano Zanin Martins, defensor do ex-presidente no Supremo. Outras duas pessoas prefeririam não ter seus nomes citados.
Segundo essas pessoas do círculo íntimo de Lula, ele não acredita que poderá concorrer à Presidência em 2022, apesar de ainda nutrir o desejo de ser candidato.
“O que ele tem repetido para algumas pessoas no particular é que não tem como desfazerem o mal que fizeram. A mentira foi tão grande, que fica difícil voltar atrás”, afirma uma das pessoas que optou pelo anonimato. “Voltar atrás e deixar o Lula readquirir os direitos políticos dele seria muito difícil, porque eles iriam se desmoralizar.”
Além da expectativa do ex-presidente quanto ao julgamento no STF e quanto ao futuro do PT nas eleições de 2022, esse círculo de pessoas próximas relata como Lula tem passado os dias; por que desistiu por enquanto de se mudar para a Bahia; por que decidiu viajar para Cuba mesmo em meio à pandemia; e o que tem pensando sobre o governo Jair Bolsonaro (sem partido) e a atuação da oposição diante do avanço da extrema-direita.
Lula deixou a prisão em novembro de 2019, após 580 dias, beneficiado por uma decisão do STF que reconheceu o direito de réus condenados a responderem em liberdade até o último recurso. Condenado em duas instâncias no caso do tríplex no Guarujá, no âmbito da Operação Lava Jato, ele cumpria pena de 8 anos, 10 meses e 20 dias.
No caso do sítio de Atibaia (SP), o TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região) condenou o ex-presidente em segunda instância a 17 anos, 1 mês e 10 dias de prisão, pela acusação de ter sido beneficiário de reformas pagas por empreiteiras que obtiveram vantagens indevidas em contratos com a Petrobras.
Janja e a cadela Resistência
Aos 75 anos, Lula mora atualmente em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, mas não mais no apartamento que dividiu durante anos com sua segunda esposa, Marisa Letícia, morta em fevereiro de 2017, aos 66 anos.
“Ele mora numa casa que era usada antigamente pelos seguranças dele. Depois que ficou junto com a Janja, eles nunca ficaram no apartamento em que ele morou com a Marisa”, conta um dos amigos do ex-presidente.
Janja é o apelido da socióloga Rosângela da Silva, 54, noiva do ex-presidente.
O relacionamento entre os dois se tornou público em maio de 2019, quando o economista e ex-ministro da Fazenda Luiz Carlos Bresser-Pereira — no que foi considerado por muitos como uma indiscrição — revelou, após visitar Lula na prisão, que o ex-presidente estava apaixonado e pretendia se casar ao deixar o cárcere.
Na casa térrea, no mesmo bairro de seu antigo apartamento, Lula e Janja moram com três cachorros vira-latas. A mais famosa é a cadela Resistência, adotada filhote por metalúrgicos do ABC que participaram da “Vigília Lula Livre”, acampamento que durou todos os 580 dias da prisão do ex-presidente em Curitiba.
“Lembro da Resistência filhotinha. Os metalúrgicos do ABC ficaram com ela um tempão, até que, um belo dia, a Janja, que ainda não era conhecida, resolveu adotá-la”, conta uma das pessoas próximas a Lula.
“O presidente dizia sempre que, quando saísse da prisão, ele ia levar a Resistência junto. E de fato levou. Ele gosta muito de cachorro. Às vezes nas lives e entrevistas, dá para ouvir os cachorros latindo.”
Exercícios físicos e rotina de ‘lives’ no computador
Segundo os amigos, um dia típico do ex-presidente começa com exercícios físicos. Em geral, ele se exercita em casa mesmo, mas às vezes vai a uma academia de amigos, onde consegue treinar com aparelhos sem a presença de outras pessoas.
“Ele tem uma esteira e faz exercícios físicos regularmente. Na Presidência ele já fazia, mas depois dela, começou a se cuidar mais, também por causa do câncer”, diz um amigo dele. “Ele costuma dizer — e não é mentira — que corre 9 km por dia. E ele corre mesmo.”
Lula foi diagnosticado com um câncer de laringe em 2011. Em março do ano seguinte, foi considerado curado pela equipe de médicos do Hospital Sírio-Libanês. Desde então, faz acompanhamento regular para assegurar que não há retorno da doença.
Após os exercícios, o dia do ex-presidente é ocupado principalmente por videoconferências e conversas por telefone. Fala com amigos, lideranças do PT, sindicalistas e militantes de movimentos sociais, em grupos ou individualmente. Sem celular próprio e com pouca intimidade com as novas tecnologias, depende da ajuda de assessores e de seus seguranças.
“O presidente nunca gostou de computador, de celular. Era uma coisa muito estranha o computador na vida dele, ele não usava. Mas, com a pandemia, ele começou a fazer muita reunião pelo computador e passou a dizer ‘as minhas brigas, que antes eram na porta de fábrica, depois foram nas ruas, agora são pelo computador’. Mas ele fala da vacina toda hora, quer tomar vacina, porque não aguenta mais ficar no computador, isso está sufocando ele.”
Sonho de morar na Bahia adiado
No ano passado, notícias davam conta de que Lula tinha planos de se mudar para a Bahia — Estado onde o petista Fernando Haddad venceu nas eleições de 2018, com mais de 72% dos votos no segundo turno, contra pouco mais de 27% para o presidente eleito Jair Bolsonaro.
Quase que instantaneamente, começaram a circular informações falsas, como a de que ele teria comprado uma mansão em Lauro de Freitas, cidade no litoral próxima a Salvador. Ou de que iria morar no mesmo condomínio em que vive Emílio Odebrecht, patriarca da construtora que foi uma das pivôs do escândalo de corrupção da Lava Jato.
“Pelo menos por enquanto, ele suspendeu o projeto. Realmente ele queria vir passar um ano, mas foi atrasando, aí foi para Cuba e voltou. Acredito que ele ainda pensa em passar um tempo aqui, mas por ora esse plano está suspenso”, diz o senador Jaques Wagner, que já foi governador da Bahia e ministro da Defesa, da Casa Civil e chefe do Gabinete da Presidência durante o governo Dilma Rousseff (PT).
“Ele tem um desejo de ter sossego, de poder passar um tempo tranquilo. É um sonho dele e da Janja também”, conta um outro amigo. “Eles chegaram a analisar a hipótese de morar na Bahia. Começaram a ver casa lá e imediatamente vieram as ‘fake news’, botando no ar um monte de casas chiques que ele supostamente iria alugar. Ele ficou muito chateado com a confusão toda que deu em torno disso. Mais a dificuldade da pandemia, e eles acabaram adiando esse desejo.”
Viagem para Cuba e covid-19
Esse mesmo desejo de um período de sossego foi um dos fatores que levou Lula a viajar para Cuba, mesmo em meio à piora da pandemia no Brasil. Novamente, o ex-presidente teve seu plano frustrado, ao ser diagnosticado com covid-19 logo nos primeiros dias de viagem.
“Havia há muito tempo um convite insistente do governo cubano e havia um convite do cineasta Oliver Stone para que eles gravassem lá um documentário”, conta uma das pessoas do círculo de Lula.
“Como em Cuba a questão da covid está bastante sob controle, era uma forma também de ele dar uma fugida, dar uma descansada. O sonho dele é que ele iria lá, iria gravar o documentário, ia ter contato com as autoridades cubanas e depois ia ficar numa praia descansando, ter uns dias de repouso. Acontece que eles chegaram no dia 22 de dezembro e, no dia 26, no segundo exame que fizeram, constatou-se a covid, aí acabou.”
Das 9 pessoas que acompanhavam Lula na comitiva à Cuba, somente 1 não se infectou.
O único que precisou ser internado foi o escritor Fernando Morais, biógrafo de Olga Benário, Paulo Coelho e Assis Chateaubriand, que trabalha atualmente num livro sobre o ex-presidente. O primeiro volume da obra (serão dois no total) tem previsão de lançamento esse ano pela Companhia das Letras no Brasil e pela Penguin nos Estados Unidos e Reino Unido.
O ex-ministro da Saúde e atual deputado federal Alexandre Padilha tem acompanhando de perto o estado de saúde de Lula.
“Ele está super bem”, diz Padilha, que é médico formado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com especialização em infectologia pela Universidade de São Paulo (USP). “Ele chegou a ter lesão pulmonar, mas antes de sair de Cuba, uma tomografia já mostrava que havia melhorado. Desde então, ele fez outros exames aqui no Brasil e está tudo absolutamente normal.”
“A coisa da covid certamente foi alguém da equipe que já estava infectado, pelo tempo do diagnóstico quando eles chegaram em Cuba”, avalia o ex-ministro. “A viagem tinha sido programada em outubro, quando internacionalmente tinha havido uma redução dos casos. Eles seguiram todos os protocolos de viagem internacional, foram de avião fretado pela produção, colheram exames antes e achavam que isso era suficiente. Fica claro que não é.”
Quanto à internação depois da volta de Cuba devido a uma infecção bacteriana, Padilha afirma que não há relação com o coronavírus.
“No sábado (6/2), ele teve um episódio intestinal e uma tremedeira, por isso o quadro foi registrado como uma bacteremia. No pronto-socorro, já começou com antibiótico. Só ficou internado até terça-feira (9/2) porque a equipe médica queria ver se identificava o crescimento da bactéria no sangue, para mudar a medicação que seria administrada em casa. Como isso não aconteceu, se manteve o medicamento que estava usando no hospital.”
Julgamento no STF e eleições de 2022
Ao menos três das pessoas do círculo pessoal de Lula têm uma mesma avaliação: a de que o ex-presidente não acredita que irá recuperar seus direitos políticos para poder concorrer novamente à Presidência em 2022.
O STF deve retomar ainda esse semestre o julgamento da ação em que a defesa de Lula pede a anulação da condenação no caso do tríplex do Guarujá, alegando parcialidade do juiz Sergio Moro. O julgamento teve início em dezembro de 2018, mas foi interrompido por um pedido de vista do ministro Gilmar Mendes.
Quando foi suspenso, o placar somava dois votos contrários à defesa de Lula, do relator Edson Fachin e da ministra Cármen Lúcia.
Em um desdobramento recente, o STF permitiu à defesa de Lula ter acesso integral às mensagens hackeadas de celulares dos procuradores da Lava Jato, apreendidas pela Operação Spoofing da Polícia Federal.
O advogado Cristiano Zanin Martins afirma, no entanto, que o acesso ao material não alterou a estratégia da defesa de Lula.
“Não pretendemos adicionar nenhum conteúdo ao habeas corpus, porque o nosso objetivo é que ele seja efetivamente julgado num futuro próximo, até porque sobre ele incidem dispositivos legais e regimentais que dão prioridade”, afirma o advogado.
“Seja porque o ex-presidente Lula é maior de 60 anos, seja porque o habeas corpus por natureza é uma ação de rito célere, seja porque é um caso cujo julgamento já foi iniciado em 2018 e precisa ser concluído pelo Supremo”, completa Zanin Martins.
Em entrevista ao portal UOL na semana passada, o ministro Gilmar Mendes explicou que, mesmo que o habeas corpus referente à condenação do tríplex do Guarujá seja concedido pelo STF, Lula ainda não será considerado ficha limpa, pois foi condenado também pelo caso do sítio de Atibaia.
“Ele pessoalmente é muito cético [com relação ao julgamento do STF]. É uma pessoa muito tarimbada, não alimenta ilusões”, diz Paulo Okamotto, que participou da fundação do Instituto Lula e foi presidente da instituição desde sua fundação, em 2011, até o ano passado. Hoje, é diretor do instituto.
“Quem é muito mais otimista são as pessoas que vivem no entorno dele, que acham que uma hora a verdade vai chegar, que cada dia vai ficando mais claro que houve uma farsa.”
Essa também é a avaliação de um amigo de Lula que optou pelo anonimato. “Ele é muito cético em relação à situação dele, de ter a possibilidade de ser candidato e ter os direitos políticos devolvidos. Por isso ele procura estimular o Haddad, para que haja uma alternativa, embora ele mantenha profundamente o desejo de voltar a ser candidato.”
“Então ele vive uma contradição permanente, que o deixa muito chateado, porque, de um lado, ele quer muito [ser candidato], de outro lado, ele sabe que é muito difícil que o sistema permita isso”, completa. “Ele acredita que a suspeição do Moro pode ser feita de tal modo que não o libere para ser candidato, em função do outro processo da chácara [de Atibaia].”
Haddad à beira da piscina e o ‘leão dentro da jaula’
“Lula então se equilibra entre o grande desejo de ser [candidato] e o realismo. Aí a preocupação dele é que o PT cresça, tenha força, seja protagonista. Ele fica muito angustiado com isso. E cobra muito do PT uma ação mais efetiva, mais mobilizadora. E cobra também do Fernando Haddad. Por isso ele teve uma conversa com o Haddad, que foi como um empurrão, tipo ‘pula na piscina, não fica enrolando'”, relata esse amigo.
Apesar disso, o ex-prefeito de São Paulo e candidato derrotado à Presidência pelo PT em 2018 tem mantido postura ambígua. Em entrevista ao site Brasil 247 no início de fevereiro, Haddad relatou a conversa com Lula.
“Ele [Lula] me chamou para uma conversa no último sábado (30/1) e disse que não temos mais tempo para esperar. Ele me pediu para colocar o bloco na rua e eu aceitei”, disse Haddad.
Dias depois, no entanto, em entrevista ao UOL, o ex-prefeito voltou a dizer que seu candidato nas próximas eleições é Lula. “Em 2018 [meu candidato] era o Lula e em 2022 continua sendo”, disse Haddad.
Esse mesmo amigo do ex-presidente tenta explicar a ambiguidade. “É por conta do respeito do Fernando a essa contradição vivida pelo Lula. Porque ele sabe que o Lula, tendo condições, adoraria ser [candidato]”, afirma. “Acredito que agora, assim que ele [Lula] receba a vacina, vai organizar um roteiro de viagem pelo país, ele quer muito isso. Ele está muito — para usar uma expressão popular — de saco cheio de ficar parado. Isso deixa ele como um leão dentro da jaula.”
Segundo o quadro do PT, Lula avalia que o resultado em 2022 pode ser diferente, ainda que o candidato do partido seja o mesmo de 2018.
“Ele [Lula] acha que pode. Primeiro, porque o Haddad terá condições de fazer uma campanha muito mais ampla, com mais tempo. Mas, sobretudo, com a costura de uma aliança mais ampla com a centro-esquerda. Ele trabalha muito a necessidade de essa aliança ser construída.”
Governo Bolsonaro e a oposição
Lula não tem medido palavras para criticar o governo Jair Bolsonaro. Em sua mais recente fala pública, durante evento online em comemoração aos 41 anos do PT, no dia 10 de fevereiro, criticou o que considera uma “destruição” de conquistas históricas pela atual gestão.
“Eu digo sempre que, para construir uma conquista, para construir uma obra, você demora anos e anos. Para destruir, você destrói num dia. E eles estão conseguindo destruir, estão conseguindo desmontar, em poucos meses, aquilo que foi construído em muitos anos.”
O ex-presidente mencionou ainda a falta de reação da oposição. “Muitas vezes, nós não estamos conseguindo reagir. Há um certo ‘anestesiamento’ na sociedade brasileira”, disse.
Um amigo de Lula conta que o ex-presidente tem uma reação muito emocional ao ambiente criado pelo atual governo. “Ele sente muito a maneira como o país deixou de ser um lugar alegre, otimista, com certo grau de fraternidade, para essa coisa do ódio de agora. Ele não consegue entender como isso foi acontecer e dói muito para ele isso.”
Segundo esse amigo, Lula avalia que os meios de comunicação tiveram papel relevante para o país chegar à situação atual. “Quando ele ataca a Globo, por exemplo, ele simboliza na Globo os meios de comunicação que, na visão dele, criaram no país um clima que levou o povo a fazer essa escolha [de eleger Bolsonaro]. Ele é muito severo em relação aos partidos e aos setores de comunicação que criaram no país um clima onde valia tudo contra o PT.”
Por fim, o petista relata a aflição do ex-presidente quanto à falta de reação da sociedade.
“Ele tem um sentimento quase de desespero, em relação à desproporção que existe entre o que está acontecendo — por exemplo, as mortes em Manaus, as mortes no país todo, a volta da fome — e a nossa capacidade de reagir. Ele não se conforma com a quase naturalização dos absurdos que estão acontecendo.”
“Aí cabe de novo a figura do leão preso numa jaula. Não poder se movimentar é uma coisa muito dura para ele. Por isso tenho certeza de que, assim que for possível, ele vai sair feito um doido pelo país afora. Para tentar levantar o povo. Porque ele sabe que só a mobilização do povo vai segurar essa situação.”
Fonte: Estado de Minas
Foto: REUTERS/Amanda Perobelli)