Por CNN
Enquanto o mundo aguarda para ver se a Rússia invadirá ou não a Ucrânia, uma nova pesquisa exclusiva da CNN em ambos os países concluiu que duas vezes mais russos acreditam que seria correto para o Moscou usar a força militar para impedir Kiev de aderir à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) do que aqueles que são contra.
Um em cada dois russos (50%) diz que seria correto, enquanto apenas um quarto (25%) diz que seria errado. O outro quarto de entrevistados (25%) está indeciso, de acordo com a pesquisa.
Entretanto, a enquete também constatou que mais russos pensam que seria errado usar a força militar para “reunir a Rússia e a Ucrânia”, dois países com uma história de ligação longa e complicada.
São números próximos: 43% dos russos disseram que o uso da força militar contra a Ucrânia para aderir à Rússia estaria errado, enquanto 36% disseram que estaria correto. Os restantes disseram que não sabiam.
Talvez sem surpresas, a maioria das pessoas na Ucrânia discordam do uso da força contra elas. Sete em cada 10 entrevistados disseram que seria errado para a Rússia usar a força militar para impedir a Ucrânia de aderir à Otan (70%) ou de reunir os dois países (73%).
A maioria dos ucranianos rejeita a afirmação do presidente russo Vladimir Putin feita no discurso de segunda-feira (21) de que a Ucrânia não tem base histórica e é essencialmente uma criação da União Soviética.
Em todo o país e em todas as idades, a maioria dos ucranianos diz que não são um só povo com os russos e que os dois países não devem ser um.
Aplicada em mais de mil pessoas em cada país, a pesquisa foi feita on-line entre 7 e 15 de fevereiro, antes do discurso de Putin na segunda-feira e do reconhecimento de Moscou de duas repúblicas separatistas na Ucrânia.
Muitos na Rússia acreditam que o seu país estaria fundamentalmente ameaçado por uma maior expansão da Otan para a Ucrânia, de acordo com Vladimir Pozner, veterano jornalista e âncora da televisão russa e soviética.
“Isso demonstra que, caso a Ucrânia se torne membro da Otan e as forças da Otan forem destacadas às portas da Rússia, isso constituiria uma ameaça existencial e, por conseguinte, é algo não pode ser permitido”, afirmou Pozner à CNN.
Orysia Lutsevych, chefe do Fórum da Ucrânia no think tank Chatham House em Londres, pintou uma imagem mais sombria da perspectiva russa.
“A Rússia dos tempos modernos tem uma síndrome de impérios em colapso. A perda dessas terras é apresentada como ‘injustiça histórica’ que deve ser retificada, inclusive pela força. A Ucrânia é vista como uma joia da coroa que está ‘sendo roubada pela Otan’. Ao insistir no antigo alarmismo soviético dos EUA e da Otan, os russos acreditam que é um bloco agressivo que atrapalha a unidade entre a Rússia e a Ucrânia”.
Medo do primeiro ataque
Diferentemente dos avisos ocidentais de que o presidente russo Vladimir Putin está deslocando forças para atacar o país vizinho, apenas 13% dos russos acham que o Kremlin está prestes a iniciar uma ação militar na Ucrânia.
A maioria dos russos também não espera um ataque ucraniano ao seu país: apenas 31% dos russos disseram que isso era provável. Na verdade, dois em cada três (65%) esperam um fim pacífico das tensões entre a Rússia e a Ucrânia.
“A razão pela qual 75% dos russos pensam que a Rússia não invadirá a Ucrânia é simplesmente por causa do que leem nos seus jornais e veem na televisão. Não há, basicamente, histeria, nenhuma batida nos tambores da guerra — há uma mensagem consistente de que não queremos uma guerra e não vamos começar”, contou Pozner.
O jornalista russo afirmou que os russos não são ingênuos nem ignorantes dos avisos dos líderes ocidentais de que Putin considera invadir a Ucrânia.
Ele explicou: “Os russos sabem o que os líderes ocidentais estão dizendo. As declarações deles são amplamente exibidas nos meios de comunicação social. O sentimento geral é de que o Ocidente, na verdade, quer que a Rússia ataque a Ucrânia porque isso seria vantajoso para o Ocidente, que assim pode atacar a Rússia”.
Mas Pozner argumentou que os russos entenderiam uma invasão da Ucrânia seria dispendiosa.
“Eles também acham que, embora a Ucrânia não pudesse resistir a uma invasão russa total, a Rússia perderia muito mais com isso do que ganharia com qualquer vitória militar”, pontuou.
No entanto, de acordo com Lutsevych, a prevalência na Rússia de considerar que o seu país não iria invadir a Ucrânia pode ilustrar “como os meios de comunicação social e a desinformação, ambos controlados pelo estado russo, estão moldando uma realidade alternativa para a população russa”.
“No interior da Rússia, o Ocidente é apresentado como um vilão que está se aproveitando da Ucrânia para minar a grandeza da Rússia. Em caso de agressão militar russa, a Rússia será retratada como uma oponente das forças norte-americanas e da Otan, e não uma assassina de seus irmãos eslavos”, projetou Lutsevych.
Entretanto, menos ucranianos do que os russos acreditam que haverá um fim pacífico às tensões – apenas 43% esperam isso. Já os ucranianos estão divididos sobre a possibilidade de a Rússia iniciar uma guerra – 42% esperam por isso, enquanto 45% pensam que é improvável. Os restantes 13% dizem que não sabem.
Mais de metade dos russos (57%) e três quartos dos ucranianos (77%) consideram que é pouco provável que a Ucrânia inicie uma ação militar na Rússia num futuro próximo, com apenas 31% na Rússia e 13% na Ucrânia a dizer que pensam que é provável que a Ucrânia instigue um conflito militar.
Os russos e os ucranianos nem sequer concordam em saber se existem forças militares russas nas zonas orientais separatistas controladas da Ucrânia, conhecidas como Donbas: três quartos dos ucranianos (73%) acreditam que há tropas russas, em oposição a um em cada cinco russos (19%).
Os russos mais jovens eram mais prováveis do que a população geral (em 28%) em dizer que suas tropas estavam em Donbas. A enquete foi concluída antes do anúncio de Putin de que a Rússia enviaria o que denominava de “forças de manutenção da paz” para as regiões.
A Rússia diz há anos que não tem soldados no local, mas autoridades norte-americanas, da Otan e ucranianas dizem que o governo russo abastece os separatistas, fornece-lhes apoio consultivo e inteligência, e inclui os seus próprios oficiais nas fileiras separatistas.
Irmãos ou não?
Indo além da crise atual, os russos e os ucranianos têm opiniões marcadamente diferentes sobre a relação entre os dois países e as suas populações.
Mesmo antes do seu discurso na segunda-feira, Putin tem insistido na ideia de que os dois povos são um, algo sobre o qual ele escreveu longamente num artigo publicado no meio do ano passado.
Putin argumentou que “a ideia do povo ucraniano como uma nação separada dos russos” foi formulada por intelectuais no século 19, não levando em conta a história complexa das nações, e afirmando que “uma vez que não existia uma base histórica – e não podia haver nenhuma, as conclusões foram fundamentadas por todo o tipo de elaborações”.
O presidente russo escreveu que a “política de localização” da era soviética enfatizava as diferenças regionais, implicando que essas diferenças tinham pouca base histórica. “Por conseguinte, a Ucrânia moderna é inteiramente o produto da era soviética”, insistiu.
O historiador Timothy Snyder, da Universidade de Yale, rejeita completamente o argumento de Putin. “O problema com o ensaio de Putin é que está tão profundamente errado em tudo o que é difícil saber para começar”, afirmou o historiador à CNN, citando um exemplo da utilização do termo “Ucrânia” em 1648. O que existe é a ideia de um estado-nação russo que é uma construção moderna, não o da Ucrânia.
“A Rússia não era uma ideia nacional no século 19. Era uma ideia imperial. Essa a noção de que havia uma nação russa, no sentido moderno, contra a qual a Ucrânia se definiu, foi contrabandeada para o texto. Mas não havia tal nação russa no século 19”, continuou.
Independentemente do debate histórico, os ucranianos tendem a pensar em si mesmos como um povo separado, de acordo com a pesquisa da CNN.
Pouco mais de um quarto (28%) das pessoas na Ucrânia dizem que os russos e os ucranianos são um povo, enquanto dois terços (66%) dizem que não são – uma imagem espelhada da visão do outro lado da fronteira.
Snyder argumentou que, neste tópico, a visão ucraniana deveria prevalecer. “A voz das pessoas com menos expressão é mais importante. Quando um país maior reivindica um país menor isso é chamado imperialismo. Os russos tendem a dizer que os ucranianos e os russos são um povo, porque (1) geralmente tiveram pouco contato com a Ucrânia e (2) é isso que o seu presidente diz e é muito semelhante à linha soviética”, continuou o historiador.
Nenhuma região da Ucrânia, e nenhuma faixa etária, tem uma maioria na qual os respondentes dizem que os russos e os ucranianos são um povo.
Mesmo na Ucrânia oriental, que faz fronteira com a Rússia e é parcialmente controlada por separatistas apoiadas pela Rússia, menos de metade (45%) dos inquiridos afirmaram concordar que os russos e os ucranianos são um povo – um resultado muito inferior ao da Rússia.
Nenhuma região na Ucrânia diz que a Ucrânia e a Rússia devem ser um país
A Ucrânia Oriental tem uma percentagem mais elevada de pessoas (45%) que se veem como “um só povo” com russos em comparação com a Ucrânia Ocidental; mas mesmo lá, não é uma opinião maioritária como na Rússia (64%).
“A Rússia e a Ucrânia devem ser um país”
“Os russos e os ucranianos são ‘um povo’”
Fronteiras contemporâneas e uma divisão geracional
Mesmo que os russos tendam a dizer que russos e ucranianos são um só povo, a maioria dos russos (54%) diz que deveria haver dois países – embora um terço (34%) diga que deveria haver um país. Os restantes 12% dizem que não sabem.
Os ucranianos, na sua esmagadora maioria, sentem que a Rússia e a Ucrânia deveriam ser dois países separados, com 85% afirmando isso, 9% dizendo que deveriam ser um país, e 6% sem saber.
Os russos têm maior probabilidade do que os ucranianos de apoiarem a alteração das fronteiras dos dois países para que as regiões da Ucrânia onde as pessoas se podem “sentir” mais russas possam formalmente tornar-se parte da Rússia.
Mais uma vez, os pontos de vista além-fronteiras são imagens espelhadas uma da outra: dois terços (68%) dos russos apoiariam a alteração das fronteiras e 8% iriam se opor, enquanto dois terços (64%) dos Ucranianos se opõem a ela e 13% apoiam-na.
Os russos e os ucranianos também diferiram nas suas opiniões sobre a União Soviética.
Sete em cada dez russos (71%) afirmam que a União Soviética foi uma coisa positiva, enquanto um em cada dez (9%) diz que era negativo. Já os ucranianos se mostraram uniformemente divididos: 34% disseram que era positiva e 35% disseram negativa. Os restantes em ambos os países foram neutros ou indecisos a esse respeito.
Existe uma divisão geracional na questão na Ucrânia: 41% das pessoas com idade igual ou superior a 55 anos (suficientemente velhas para se lembrarem da União Soviética) veem-no como algo positivo. Apenas um quarto (23%) dos jovens de 18 a 34 anos na Ucrânia – pessoas nascidas após o colapso da URSS, ou crianças pequenas quando ela se dissolveu em 1991 – consideram que foi positiva.
As diferentes opiniões da URSS derivam de diferentes relações com ela.
“A liderança russa tende a definir a Rússia como o estado sucessor da União Soviética. Mais do que os ucranianos, os russos têm um momento difícil de definir uma história sem a União Soviética no centro”, disse o historiador de Yale.
“Os russos tendem a aceitar que a União Soviética tinha políticas de terror, mas acreditam que os custos destas políticas eram suportados de forma igual em toda a URSS. Na Ucrânia, as pessoas tendem a acreditar que o Holodomor de 1932-1933, uma fome política desenvolvida por Stalin, foi dirigida ao seu país em particular”.
Preocupações comuns
Apesar do grande fosso nas visões que têm de cada um, russos e ucranianos convergem em alguns tópicos.
Dada uma lista de nove caraterísticas, os russos e os ucranianos tendiam a concordar com as ideias que Putin e o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, personificavam – com algumas diferenças notáveis.
“Forte” e “decidido” foram as segunda e terceira respostas mais populares para Putin, tanto para os russos como para os ucranianos. A escolha número um foi radicalmente diferente: os russos escolheram “inteligente”, enquanto os ucranianos escolheram “perigoso”.
A maioria dos ucranianos escolheu apenas “amigável” e “inteligente” como descrições do seu próprio presidente, com cerca de 40% a selecionar também “pragmático” e “responsável”. Entretanto, os russos não classificaram Zelensky com pontuação alta nessas caraterísticas, com um terço (35%) – à semelhança dos próprios ucranianos (32%) – descrevendo-o como “perigoso”.
As opiniões se dividiram muito em relação ao presidente dos EUA, Joe Biden. As descrições mais comuns de Biden por parte dos ucranianos foram “inteligente”, “forte” e “responsável”, enquanto a maioria dos russos não o marcou por nenhuma das caraterísticas. Metade (47%) dos russos taxaram Biden de “perigoso”, tal como um terço (32%) dos ucranianos.
Foto: Recursos visuais/CNN