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Não há R$ 36 bilhões comprovados da Vale S/A para pagar pelo crime de Mariana Conforme o Ministério Público Federal, os valores declarados pela Fundação Renova nunca passaram por uma auditoria externa séria e independente

2 de março de 2023, 16h46 | Por Redação ★ Blog do Lindenberg

by Redação ★ Blog do Lindenberg

Por Maurício Angelo, do Observatório da Mineração

A Fundação Renova, entidade mantida pelas mineradoras Vale, BHP e Samarco, alega que irá aportar, até o fim de 2023, R$ 36 bilhões para as indenizações de pessoas atingidas e a reparação socioambiental do rompimento da barragem de Mariana, em novembro de 2015, considerado o pior desastre ambiental da história do Brasil.

De acordo com o Ministério Público Federal, porém, os valores declarados pela Renova nunca passaram por uma auditoria externa séria e independente, não há qualquer comprovação de que esses valores correspondam à realidade e, na prática, isso não pode ser observado na bacia do Rio Doce e pelos relatos dos atingidos.

“Você vê que esses bilhões não estão sendo gastos. A gente não tem nenhuma informação de onde está sendo gasto esse dinheiro. Eles botam esses números no site, mas de forma alguma, como MPF, a gente vê isso ocorrer na bacia do Rio Doce. São informações da própria Renova, não tem informações garantidas de que esses valores efetivamente foram pagos”, diz o procurador federal Carlos Bruno Ferreira, coordenador da Força-Tarefa responsável pelo caso, em entrevista exclusiva ao Observatório da Mineração.

O valor total de R$ 36 bilhões em reparação gastos de 2015 até o final desse ano, sendo R$ 8 bilhões para ações apenas em 2023, foi amplamente divulgado pela mídia depois de informado pela Renova em 14 de fevereiro.

A falta de comprovação detalhada sobre esses valores é importante porque pode afetar o novo acordo por Mariana que está sendo costurado desde 2021 no Conselho Nacional de Justiça.

O governo Lula está se inteirando do teor do acordo, que estaria “95% fechado”, segundo Carlos Bruno. Embora não confirme o valor que está na mesa para as mineradoras pagarem, em função de sigilo, especulações dizem que a cifra gira em torno de R$ 112 bilhões.

Isso não incluiria o que a Renova diz ter pagado até aqui, mas seria “dinheiro novo” para a reparação socioambiental e indenizações. Durante o processo de repactuação, porém, o coordenador da Força-Tarefa Rio Doce começou a observar que a Renova estava inflacionando os dados divulgados no próprio site e começou a levar isso para o debate interno. Bilhões extras eram anunciados no site da Renova sem explicação aparente, conta.

As cifras finais anunciadas, de R$ 36 bilhões, assim como o número total de pessoas que teriam recebido as indenizações, de 409,4 mil pessoas beneficiadas até o fim de 2022, não encontram respaldo na realidade, segundo o MPF.

“Durante a época da repactuação a Renova frequentemente atualizava os dados no site, ia aumentando um bilhão, fazem isso como estratégia. Quanto mais eles colocam no site que eles pagaram, dá a imagem de que estão fazendo muita coisa, avançando muito. Esses valores, repito, a gente não tem auditoria, são valores informados pela Renova. Não tenho qualquer tipo de garantia, pela ausência de uma auditoria séria na Renova, de que esses valores efetivamente foram pagos. E esse número (de pessoas) nunca correspondeu ao que mais ou menos eles informavam”, reforça Carlos Bruno, que também é doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Sevilla.

Além do processo no Brasil, em julho do ano passado a justiça do Reino Unido aceitou o pedido para que a responsabilidade pelo desastre de Mariana seja julgado também na Inglaterra, em ação coletiva que representa 200 mil pessoas e tem como alvo a anglo-australiana BHP, maior mineradora do mundo e que é sócia da Vale na Samarco.

Em novembro último, o rompimento da barragem completou 7 anos. No Brasil, como o Observatório mostrou, o processo ainda está no início e nenhum dos réus foi punido criminalmente. Os crimes ambientais correm risco de prescrever totalmente em 2024.

Justiça obrigou Renova a ressarcir atingidos por valores pagos indevidamente a advogados

Em março de 2021 eu revelei com exclusividade no Observatório da Mineração que o juiz federal Mario de Paula Franco Júnior, da 12ª Vara Federal de Belo Horizonte, orientou advogados do Espírito Santo sobre como deveriam proceder para conseguir um novo sistema de indenização para o rompimento da barragem de Mariana.

O sistema de indenização simplificado, chamado de “Novel” e criado pelo juiz com anuência da Vale e Fundação Renova, se espalhou pela bacia do Rio Doce rapidamente. A obrigatoriedade de pagar 10% para advogados que entram com os pedidos gerou uma indústria de enriquecimento de pequenos advogados em cidades, na sua maioria, pequenas e pobres.

Em junho de 2022 a Renova foi obrigada pela justiça a deixar de descontar 10% dos valores de indenização pagos aos atingidos, já que os custos deveriam ser arcados pela própria Renova.

Depois de decisões judiciais que também derrubaram a “quitação definitiva” que o atingido era obrigado a assinar e que restabeleceram o pagamento retroativo de outro auxílio financeiro, o emergencial (AFE), a Renova ressarciu os moradores impactados em R$ 998 milhões de reais pagos indevidamente a esses advogados. Outros R$ 411 milhões foram pagos pela Renova em Minas Gerais e no Espírito Santo por ter cortado o AFE.

Os dados divulgados pela própria Fundação, resultado de ações judiciais, foram anunciados pela Renova em nota na Folha de S. Paulo e no site da entidade. Em fevereiro, a Renova divulgou que os pagamentos de indenizações em 2022, principalmente no “Novel”, cresceram 54% em relação a 2021.

O MPF estranhou os valores e questionou a Renova.

“Mais uma vez a Renova pega os valores que ela é condenada e tenta mascarar para dizer que está fazendo uma bondade para os atingidos, que ela é boa para os atingidos. Isso não corresponde à realidade”, afirma o procurador Carlos Bruno.

Após decisão judicial de setembro de 2022, a Renova diz que repassou aos advogados inseridos no “Novel” R$ 296 milhões que não foram descontados dos atingidos.

O total de R$ 8,07 bilhões pagos no Sistema Indenizatório Simplificado até dezembro de 2022, que alcançou 74,9 mil pessoas segundo a Renova, também não fecha com os 10% previstos inicialmente a advogados, que ficaria em R$ 800 milhões. Como os valores retroativos e os extras pagos diretamente a advogados foram incluídos na conta, de acordo com a Renova, o valor final fechou em R$ 9,08 bilhões até o fim de 2022.

Foto: Júlia Pontés

“Mexer na Renova é um esforço inútil”. Reparação ambiental em xeque.
A confusão de números revela uma governança que tem sido sistematicamente criticada pelo Ministério Público, Defensorias, prefeitos e atingidos desde 2015.

“Há uma convicção que mexer na Renova é um esforço inútil nesse momento depois de todos esses anos da Renova funcionando sem qualquer controle, sem qualquer verificação por parte do poder público, o trabalho que ia dar de verificar esses valores é contraproducente. É melhor, na realidade, diminuir ao máximo as funções da Renova e começar do zero”, afirma Carlos Bruno ao Observatório da Mineração.

O Doce, um dos principais rios do Brasil e que inclusive fazia parte do nome da Vale, continua vastamente poluído por lama tóxica e metais pesados ao longo dos quase 700 quilômetros de Mariana, em Minas Gerais, até Regência, em Linhares, no Espírito Santo, onde deságua no Oceano Atlântico.

Os valores destinados para ações socioambientais são criticados e, na prática, isso não é verificado na bacia do rio Doce. Para restauração florestal, por exemplo, a Renova alega ter destinado R$ 1,7 bilhão.

“O que foi feito de reparação na bacia do Rio Doce é pífio, é muito pouco para a reparação de todo o dano ambiental da tragédia da barragem de Fundão”, diz o coordenador da Força-Tarefa de Mariana. Para Carlos Bruno, “a gente vê que a bacia não está mudando, as coisas não estão melhorando, a reparação ambiental não está aumentando, isso é fato”.

Governo Lula avalia repactuação por Mariana

O governo Lula está se inteirando dos termos da repactuação firmados até o momento e pode mudar o contrato, que estaria “praticamente pronto”.

O valor original pedido na Ação Civil Pública de reparação era de R$ 155 bilhões. O patamar atual do acordo estaria em R$ 112 bilhões acertados com Vale, BHP e Samarco. Seja qual for o valor final, os R$ 36 bilhões que a Renova alega ter gastado até o momento não devem entrar na conta, defende Carlos Bruno, do MPF.

“Entendemos que não cabe ficar fazendo pente fino na Renova. A Renova pode dizer quanto eles alegaram que gastaram, o que importa é o que vem de dinheiro novo que vá compensar atingidos e o meio ambiente da Bacia do Doce, dinheiro que vai servir para reparação futura, efetiva e célere da bacia e da vida de todas as questões dos atingidos”, afirma o procurador.

O MPF vê com bons olhos a retomada das discussões no Conselho Nacional de Justiça, requerida pela ministra Rosa Weber, e tem fornecido todas as informações solicitadas pelo governo federal.

A discussão no momento estaria no fluxo de pagamento, mas que decisões “finais e difíceis precisam ser tomadas”, avalia Carlos Bruno. Marina Silva, ministra do Meio Ambiente, deve revisar os valores e termos, por exemplo.

“O governo federal tem direito de revisar todo esse acordo, avaliar e fazer sugestões do que pode melhorar. Até o momento que se assina não há nada marcado em pedra. Considerando todo o conhecimento técnico produzido até aqui, há inúmeros cenários possíveis para um acordo. Não vejo motivo para não ser assinado num prazo curtíssimo. Depende da União avaliar e considerar adequado, sugerir mudanças necessárias e tomar decisões”, resume o procurador.

Renova defende informações prestadas e diz que passa por auditoria
Procurada pelo Observatório da Mineração, a Renova enviou a seguinte nota ao site:

“A Fundação Renova esclarece que o valor de R$ 8,07 bilhões informado em 07/02/2023 é referente ao total pago em indenizações e auxílios financeiros emergenciais até dezembro de 2022, não considerando o total de honorários retroativos de R$ 998 milhões pagos aos atingidos após decisão proferida em setembro pela 4ª Vara Federal.

O valor de R$ R$ 9,08 bilhões divulgado em 14/02/2023 considera o total pago até dezembro de 2022, englobando os honorários retroativos pagos aos atingidos.

O valor total de indenização e auxílios financeiros emergenciais de R$ 4,7 bilhões divulgado contempla pagamentos efetivamente realizados somente em 2022, incluindo valores retroativos. Nesse valor, também estão incluídos valores pagos em honorários de advogados das pessoas que foram indenizadas.

Os dados enviados pela Fundação Renova, em 13/02/2023, ao Ministério Público Federal via ofício, em razão de requisição, contemplaram apenas as informações solicitadas no ofício 769/2023. Em atendimento à requisição posterior, a Renova informou em seu site os valores totais pagos, no âmbito de 2022, de maneira detalhada, que podem ser conferidos no link.

O Sistema Indenizatório Simplificado viabilizou o pagamento para categorias com dificuldades de comprovação de danos, como lavadeiras, artesãos, areeiros, carroceiros, extratores minerais, pescadores de subsistência e informais, entre outros. O sistema também indeniza Dano Água e categorias formais como pescadores profissionais, proprietários de embarcações e empresas como hotéis, pousadas e restaurantes.

Os valores das indenizações pagos pelo Sistema Indenizatório Simplificado são homologados pela 4ª Vara da Justiça Federal.

A Fundação Renova esclarece que é uma entidade privada, sem fins lucrativos, baseada na transparência e no diálogo com a sociedade. Os processos da instituição são acompanhados e fiscalizados, permanentemente, por auditorias externas independentes”.

Também procurei Vale, BHP e Samarco para que se posicionassem sobre as afirmações do MPF e os números informados pela Renova.

A Samarco respondeu que “a Fundação Renova, criada a partir do Termo de Transação de Ajustamento de Conduta (TTAC), assinado em março de 2016 entre a Samarco, suas acionistas, e os governos Federal, de Minas Gerais e do Espírito Santo e outras entidades, é uma entidade autônoma e independente, dedicada em tempo integral e exclusivamente a implementar e gerir os programas e ações de reparação e compensação de danos decorrentes do rompimento de Fundão”.

Vale e BHP não responderam.

Foto: Júlia Pontés

Indícios de que Vale e BHP usam a Renova para reembolsar valores pagos na reparação
Dois anos atrás o Ministério Público de Minas Gerais pediu a extinção da Fundação Renova e o pagamento de danos morais estipulado em R$ 10 bilhões. A repactuação deve confirmar o fim da Renova, que acumula ineficiência e falta de transparência ao longo dos últimos sete anos.

Mostrei em 2020 que, de acordo com o próprio estatuto da Renova, a Fundação pode ser extinta por decisão unilateral das mineradoras Vale, BHP e Samarco a qualquer momento. E as empresas também podem pegar de volta o dinheiro que estiver no caixa da Renova.

Manobras fiscais intrincadas também levantam suspeitas.

Em julho de 2020, uma investigação exclusiva do Observatório da Mineração revelou que Vale e BHP podem pegar de volta dinheiro que deveria ir para a reparação do desastre de Mariana. A manobra usaria a Fundação Renova.

Há indícios de que as doações da Vale e da BHP à Renova estão sendo registradas como dívida contraída pela Samarco, que se compromete a devolver o dinheiro às suas controladoras. É uma manobra vedada pela Receita Federal.

Em junho de 2021 os credores da Samarco confirmaram, via recuperação judicial, o que a nossa investigação de julho de 2020 mostrou de forma inédita: essas manobras de Vale e BHP podem representar um compromisso de reembolso pela Samarco de R$ 24 bilhões.

Metade da dívida da Samarco de R$ 50 bilhões seria na verdade devido para Vale e BHP considerando os aportes feitos na Fundação Renova. Nessa posição, além de receber de volta o dinheiro, Vale e BHP aparecem como credores privilegiados e posição de destaque na recuperação judicial da Samarco.

A Samarco, que tem o controle dividido metade a metade por Vale e BHP, deve mais de R$ 5 bilhões para o governo federal, em estimativa de 2021 obtida via Lei de Acesso à Informação.

Foto: Júlia Pontés

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