Por G1
No ano em que a celebração da Consciência Negra completa seu 50º aniversário, lideranças negras e quilombolas conquistaram um marco em seu histórico de luta política no Brasil: pela primeira vez em 26 edições, a Conferência do Clima das Nações Unidas teve a presença significativa de organizações do movimento negro.
Na edição em que o Brasil deixou de travar as negociações sobre o mercado de carbono e cobrou por recursos, um dos destaques do evento foram as organizações da sociedade civil: além das lideranças indígenas, organizações da luta antirracista levantaram o debate sobre o genocídio em curso como efeito direto da crise climática. Os grupos ainda lançaram um manifesto em defesa da titulação de territórios quilombolas.
“O debate sobre justiça climática é necessariamente um debate de direitos humanos”, explica o historiador e ativista Douglas Belchior, que integrou a comitiva da Coalizão Negra por Direitos em Glasgow. “Nós queremos um planeta preservado para as pessoas que vivem nele. Existem segmentos de população que podem exercer a plenitude da sua vida e outros segmentos que não.”
Segundo Belchior, esta também foi a primeira vez na história do movimento em que lideranças saíram em tour pelos parlamentos de Paris, Madrid, Berlim e Munique para denunciar o racismo ambiental e a violência contra a população negra no Brasil.
“Em 2021, a gente continua tendo que repetir o exercício que fez Abdias do Nascimento: denunciar o genocídio negro no Brasil. O mundo desconhece, mas o genocídio continua.”
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‘Ondas de bandeiras’
As demandas por justiça ambiental não são novidade na agenda do movimento negro no Brasil. Mas a participação inédita de mais de 200 entidades contempladas pela comitiva da Coalizão Negra por Direitos – atualmente o maior pacto entre organizações negras do país – representa um momento de atualização das pautas de enfrentamento ao racismo estrutural. É o que explica Dennis de Oliveira, professor da ECA/USP e pesquisador de movimentos sociais, ao analisar as “ondas de bandeiras” que se destacaram na história da luta antirracista.
“Quando você pega o período da Constituinte (1987-1988) – quando o racismo se transformou em crime inafiançável e imprescritível – houve uma certa mobilização de parte da intelectualidade negra no campo jurídico por conta dessa conquista legal.”
“Depois, durante a aprovação da lei que instituiu o estudo das relações étnico-raciais, houve essa mesma tendência no campo educacional, com a formação de professores e construção de material didático. O mesmo acontece com o recrudescimento da violência policial. Todos esses processos são expressão do que a gente chama de racismo estrutural. ”
Para Dennis, a pandemia de Covid-19 – mais letal entre a população negra – foi o que trouxe urgência às demandas por participação no debate climático.
“No cenário pós-pandêmico, a pauta pela vida digna é a grande questão. Quando se fala em questão ambiental, não se trata apenas da preservação de ecossistemas, mas da garantia da vida digna de comunidades negras que estão tendo os seus lugares de vivência destruídos pela ganância da produção industrial e pela extração desenfreada e não-sustentável de recursos naturais”, explica. “Para a população negra – assim como para os povos originários – não é apenas uma questão de defesa de meio ambiente, mas de sua própria existência física.
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O ativista Douglas Belchior, cofundador da Uneafro e uma das principais lideranças da Coalizão Negra por Direitos, vê esses momentos na história como uma resposta ao que chama de “atualizações da opressão racial”.
“As estratégias do genocídio se atualizam, assim como as nossas [estratégias] para enfrentá-lo”, diz.
Racismo ambiental
Para além dos efeitos da pandemia, existem outros motivos para a pauta climática servir como pano de fundo para a denúncia do genocídio da população negra, quilombola e indígena no Brasil. Às vésperas da cúpula do clima, o governo Bolsonaro rejeitou o uso do termo ‘racismo ambiental’ usado em um relatório da ONU para citar a situação das comunidades quilombolas no Brasil.
“Quando o governo pensa em construir hidrelétricas é nas áreas de populações menos favorecidas, são as Comunidades Quilombolas e as terras indígenas, os pescadores”, explica Katia Penha, coordenadora nacional da Coordenação das Comunidades Quilombolas do Espírito Santo (CONAQ/ES). Ela esteve entre as lideranças que representaram mais de 6300 comunidades quilombolas na COP 26, onde falaram sobre os impactos das hidrelétricas na região Amazônica.
Segundo dados da Conaq, existem 16 milhões de quilombolas no Brasil. E embora tenham sido citadas pelas Nações Unidas como vítimas do racismo ambiental, esta foi a primeira vez em que lideranças quilombolas estiveram na conferência do clima.
“Hoje quem é que discute a pauta ambiental no Brasil? São pessoas brancas classe média alta ou classe média”, provoca Selma Dealdino, secretária executiva da Conaq. “Nós temos várias iniciativas populares, de pessoas simples que transformam aquele espaço em que vivem, mas que não agridem, não violam, não violentam a natureza. Então é necessário ouvir o que essas pessoas têm a dizer.”
Já o ativista climático Marcelo Rocha, de 26 anos, dá exemplo práticos do racismo ambiental nas zonas urbanas ao expor sua trajetória na periferia de Mauá (SP).
“A periferia me torna um ativista climático a partir do momento em que olho ao meu redor e percebo o quanto estou imerso na desigualdade: Quem são as pessoas que sofrem mais com uma enchente? Minha mãe, que depois de passar o dia inteiro limpando a casa de alguém foi obrigada a passar a noite em uma estação de trem para esperar o rio baixar. Eu estou falando sobre o nosso cotidiano.”
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Marcelo discursou para milhares de pessoas pela plataforma Fridays for Future em Glasgow. Marcelo aponta que o debate sobre meio ambiente se tornou elitizado, e peca em dialogar com as demandas mais urgentes da população.
“Não estamos no mesmo barco. A tempestade é a mesma, mas o nosso barco enquanto população preta e periférica é uma jangada. Enquanto a galera tá produzindo solução climática pra ir para Marte, a gente tá falando de comer hoje”, diz.
Momento histórico
Diosmar Filho, doutorando em Geografia pela UFF e coordenador do projeto “Mudanças Climáticas em face do Reconhecimento dos Territórios Negros” explica o caráter inédito da ocupação do movimento negro na COP 26: trata-se da maior presença política de movimentos negros brasileiros em instâncias da ONU desde 2001, na conferência de Durban, na África do Sul, onde foi reivindicada uma maior participação na agenda política ambiental na ONU. “Precisou de 20 anos pós-Durban para que alcançássemos o que vivemos agora (na COP 26).
O pesquisador ainda alerta que a falta desses grupos nos principais eventos sobre clima podem reforçar um novo ciclo de exploração de territórios de países em desenvolvimento, com história marcada pelo colonialismo.
“Não se fala de onde é que vai tirar minério para tornar carros elétrico, avião a nitrogênio, tudo isso. Pelo porque a gente tem de informação, esses minérios estão no continente africano, na Austrália e na América do Sul, em países como Brasil, Bolívia, na Amazônia, na Amazônia internacional. Para fazer isso, será preciso um novo ciclo de exploração, que novamente viola povos e territórios.”
Foto: Marcelo Rocha