Por Blog do Gerson Nogueira
m entrevista à jornalista Mônica Bergamo, na Folha de S. Paulo, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tocou em pontos essenciais dos desafios para o governo na administração da economia. A grande questão é o déficit público projetado pelo Tesouro Nacional em R$ 162,4 bilhões em 2023, um buraco orçamentário que se não for tapado pode comprometer a estabilidade do pagamento de juros no mercado de títulos públicos, a grande preocupação da direita. De acordo com Haddad, são dados “um pouco superestimados do ponto de vista das despesas”, o mantra de que o governo pretende gastar muito com investimentos sociais e em incentivos à reindustrialização.
Do ponto de vista da arrecadação, há um conjunto de medidas em fase de envio ao Congresso Nacional “muito bem fundamentado”, segundo o ministro. Uma delas é a alteração das regras dos julgamentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), beneficiando o governo nas disputas com devedores de impostos, que era uma projeção no começo do ano e já é uma certeza. De acordo com Haddad, vários acordos foram pré-estabelecidos com devedores importantes e aguardam a definição do Congresso.
Há ainda o que o ministro chamou de “disciplinar” (possivelmente executar) a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que deu ganho ao governo em uma causa de R$ 90 bilhões contra empresas. “Uma coisa é quando você faz uma projeção de algo que está em processo. Outra é quando você já tem uma decisão (legislativa ou judicial), e a Receita Federal faz a projeção”, explicou, acrescentando que são projeções bastante tímidas em relação ao potencial de arrecadação em 2024. Também há a nova tributação de apostas esportivas, que o ministro avalia entre R$ 6 bilhões e R$ 12 bilhões.
Juros na estratosfera
Haddad também reiterou que o governo está corrigindo distorções absurdas do sistema tributário, o que levará a um aumento de arrecadação. “O Brasil era o único país do mundo que tinha privatizado a sua Receita Federal”, disse, referindo-se à regra de que o empate no julgamento de uma dívida de impostos no Carf favorecia os devedores, tirando do governo o voto de desempate.
De acordo com o ministro, o caso era tão grave que chegou à suspensão do diálogo com a Organização Para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne os países desenvolvidos, porque ela não aceitaria, entre seus membros, um país com a Receita Federal privatizada. “Era um escândalo patrimonialista dos mais execráveis, uma das heranças péssimas do governo anterior que está sendo corrigida. Lobbies poderosos sofreram derrotas importantes. Estamos promovendo a despatrimonialização e a republicanização do Estado brasileiro.”
Haddad também criticou o Banco Central, que “manteve o juro na estratosfera”. “E isso faz com que a projeção de crescimento econômico para o ano que vem seja um pouco menor do que nós imaginávamos. O Banco Central está atrasado, mas ele, um dia, acorda. O crescimento neste ano, apesar de ainda tímido, surpreendeu. Mas veio sobretudo do agronegócio. Já o consumo das famílias vai ter a pior variação desde a pandemia. Ou seja, não se vislumbra qualquer espetáculo do crescimento”, analisou.
Conceitos monetários
A análise do ministro é um contraponto à tese do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, que em entrevista ao empresário Abílio Diniz, na TV CNN, jogou a culpa dos juros altos no governo. Segundo ele, é preciso tomar cuidado para não haver “inversão de valores”, justificando a alta dos juros pelo endividamento do governo.
Sua justificativa é de que se um empresário está tentando pegar dinheiro, que está caro, a culpa não é da malvadeza do Banco Central, mas do governo, que está competindo pelo dinheiro disponível. A competição encarece o dinheiro. “Então, é importante explicar isso para a gente entender que se o governo não devesse quase nada, se a dívida do governo fosse muito pequenininha, o custo do dinheiro seria mais barato para todo mundo”, comentou, acrescentando que os juros altos não são causa, mas consequência.
A questão é saber como e por que o governo se endividou. Explicar como a manipulação da taxa de juros – sobretudo de meados dos anos 1990 em diante – pelo Banco Central como instrumento único de controle dos preços deflagrou esse endividamento, ignorando que não existe um diagnóstico simples e objetivo da inflação.
Mais ainda: entender os mecanismos das alavancas que devem ser acionadas como freios nessa escalada descontrolada, arejando o debate e permitindo que o mantra monetarista reine em regime de monopólio via cartel midiático. Até o Banco Central enveredou pelo caminho da censura, conforme matéria do jornal Folha de S. Paulo revelando uma tentativa de condicionar entrevistas de diretores à aprovação prévia de Roberto Campos Neto.
Haddad, por exemplo, discorda frontalmente do presidente do do Banco Central. “Do nosso ponto de vista, e do ponto de vista de todo mundo que produz, o ciclo de baixa dos juros já deveria ter começado. Porque não há nenhuma ameaça inflacionária no horizonte”, disse, sem se estender para outras análises, como a tese de que fórmulas matemáticas não devem substituir o desenvolvimento, de que a política econômica de um país não pode ser determinada por simples conceitos monetários.
Dilema inflação e desenvolvimento
A fala de Roberto Campos Neto suscita novas indagações sobre a atualidade do dilema inflação e desenvolvimento, tema que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva trouxe à baila desde a campanha eleitoral. Na primeira reunião do Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI), o presidente disse que “ficou uma briga de séculos: quem era desenvolvimentista e quem era financeirista”. “Os financeiristas ganharam, e o Brasil perdeu”, destacou. Segundo ele, “está na hora de o desenvolvimentismo ganhar para que a gente volte a gerar oportunidades para 203 milhões de habitantes”.
Como forma de sufocar esse debate, a mídia faz uma campanha sistemática para desqualificá-lo e impedir uma abordagem mais abrangente do problema. A essência, bem distante da aparência, está nos desdobramentos da crise econômica estrutural, a famosa herança maldita deixada sobretudo pela ditadura militar.
Desde meados da década de 1970, o país se bate com graves desequilíbrios causados pelo chamado “milagre econômico”, o endividamento externo para financiar as grandes obras do regime, num momento em que o centro do capitalismo, os Estado Unidos, manipulava a taxa de juros internacional e a emissão de dólar a seu bel prazer. Surgiu daí a ideia de “política fiscal” – o controle da inflação pela taxa de juros – como âncora da “estabilidade monetária”, o cerne do Plano Real, precedido de uma sucessão de pacotes iniciada no início dos anos 1980.
Gestão financeira da economia
O conceito, bem enunciado pelo economista James O’Connor no livro A crise fiscal do Estado, é a essência do neoliberalismo. Em torno dele, formaram-se governos com programas voltados exclusivamente para a sua execução. Já em 1979, o ministro do Planejamento, Mário Henrique Simonsen, disse, ao passar o posto para Antônio Delfim Netto, que o país precisava de “estabilidade monetária” e que havia “necessidade de ajustes” e “austeridade fiscal”. Esse mantra neoliberal estava em expansão, comandado pelos governos Margaret Thatcher (Inglaterra) e Ronald Reagan (Estados Unidos).
Após o fracasso dos anos 1980, chegou com força as ideias de “modernidade” sob a presidência de Fernando Collor de Mello e a “estabilidade monetária” de Fernando Henrique Cardoso (FHC), que, nas palavras de Aloysio Biondi, no livro O Brasil privatizado, “não destruiu apenas a economia nacional, tornando-a dependente do exterior”, mas “seu crime mais hediondo foi destruir a alma nacional”. Consolidou-se o que a economista Maria da Conceição Tavares definiu como “tecnocratas”, verdadeiros czares da economia, arrogantes, absolutistas e corrompidos.
Criou-se até uma norma específica para essa política, a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal, uma camisa de força que amarra o Estado ao compromisso de manter uma constante transferência de recursos públicos para o domínio privado, a gestão financeira da economia. Todas as atividades subordinam-se aos ditames do conhecido capital fictício, gerido pelos bancos, de um pequeno comércio aos grandes operadores do agronegócio.
Esse instrumento alavanca as chamadas “reformas estruturais”, recurso para jogar o peso da crise nas costas do povo, uma violação flagrante dos preceitos sociais e democráticos da Constituição. O custo é a supressão de direitos previdenciários e trabalhistas, além do saque ao patrimônio público e às riquezas nacionais.
Mundos e fundos
Criou-se também um poder paralelo, a tal “independência” do Banco Central, responsável pela gestão monetária de forma absolutista, totalmente a serviço da “política fiscal”. Surgiram dessa política as sucessivas emendas constitucionais e outras normas regulamentares que concentram poderes nas mãos dos gestores da política monetária e dão à institucionalidade democrática do país o papel de mera figuração. As intervenções democráticas dos governos Lula e Dilma Rousseff despertaram a reação dos beneficiários desse parasitismo financeiro, manifesta na marcha golpista impulsionada pela farsa do “mensalão” e que resultou na delinquência lavajatista.
No curso dessa marcha golpista, surgiu o programa do golpe de 2016, ordenado no documento conhecido como “ponte para o futuro”, assumido pelo usurpador Michel Temer. Sua essência está num relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgado ainda na pré-campanha das eleições presidenciais de 2018, propondo “a consolidação fiscal, incluindo a que pode acontecer por meio do novo teto federal de gastos, e a reforma da Previdência”. Como uma ordem unida, consultorias financeiras pelo mundo afora bateram nessa tecla, fazendo ressoar na mídia brasileira o mantra imperativo das “reformas”.
O ministro da Economia do governo Bolsonaro, Paulo Guedes, surgiu na campanha eleitoral de 2018 com esse discurso. Radical e agressivo, prometia mundos e fundos – principalmente fundos – para quem apoiasse seu programa de governo. E assim consolidou-se a coalizão da direita, urdida à margem do quadro partidário brasileiro e sustentada no lavajatismo, que levou Bolsonaro à Presidência da República. As idiossincrasias do presidente e suas ameaças nazifascistas não obstaculizaram, na essência, os propósitos de Guedes.
A sentença da Folha de S. Paulo
Essa é a essência da política monetária de Roberto Campos Neto, um jogo bruto contra as propostas de Lula, que só se viabilizam com a revogação da lógica neoliberal. Sem enfrentar esse debate e sem uma ampla mobilização popular – inclusive no campo das ideias –, essa tendência tende a seguir em frente. Enquanto Haddad apresentava os números da arrecadação, por exemplo, o Boletim Focus – um parecer de “analistas de mercado” consultados regularmente pelo Banco Central para diversas variáveis macroeconômicas – mostrava descrença sobre o déficit zero.
O parecer soa como chantagem, pauta para a mídia manter a pressão sobre o governo e justificar os juros altos, indicando cortes no orçamento para estabilizar o fluxo de pagamento dos serviços da dívida pública. Na prática, isso implica redução orçamentária para áreas como saúde e educação e aperto na economia, comprometendo investimentos para a retomada do crescimento e geração de empregos e renda.
O problema é o gasto, sentenciou o jornal Folha de S. Paulo em editorial, ressaltando que o Tesouro evidencia que a “sanha arrecadatória está longe de equilibrar Orçamento” e que o governo “continua longe de obter credibilidade para seus compromissos e projeções de reequilíbrio das contas”. “O erro de origem do governo petista, como se sabe, é pretender manter uma trajetória contínua de aumento da despesa pública, que começou antes mesmo da posse de Lula. Todo o ajuste, portanto, fica na coluna das receitas”, criticou.
O povo da Faria Lima
Os jornalões também fizeram alarde com o tombo de 2% na atividade econômica calculado pelo Banco Central, que seria uma prévia do Produto Interno Bruto (PIB). “Terminada a safra de soja e milho do início do ano, que garantiu um crescimento espetacular da economia no primeiro trimestre, o Brasil despencou a uma velocidade bem maior do que a prevista pelos analistas, que imaginavam uma queda ao redor de 0,1%”, afirmou a Folha em editorial.
Segundo o jornal, a associação do tombo aos juros do Banco Central “é distorção tão flagrante quanto foi o excesso de entusiasmo com o bom desempenho da economia no início do ano”. “Seria bom o governo sinalizar que o prometido ajuste fiscal é sério, o que já teria o condão de fazer os juros futuros recuarem. Enquanto prevalecer a suspeita de que o governo e o Congresso não estão dispostos a cortar despesas, o custo do dinheiro continuará alto”, afirmou, repetindo a receita de Roberto Campos Neto.
Na verdade, a pressão maior recai sobre Haddad, tido pela mídia como espécie de contraponto a Lula por sua atuação política na primeira etapa da reforma tributária. Em entrevista à TV Record, o presidente disse que Haddad não foi indicado para “o povo da Faria Lima”, numa referência aos escritórios do mercado financeiro internacional, gerido pelas oligarquias de Waal Street, que funcionam no famoso endereço de luxo da cidade de São Paulo.
“O Haddad foi indicado para tentar resolver a vida do povo pobre deste país. O Haddad foi indicado para fazer uma política econômica que possa devolver ao povo trabalhador, às mulheres e aos homens, o direito de viver dignamente, trabalhar e ter um salário digno para poder sustentar sua família. É para isso que o Haddad foi indicado. Ele não foi indicado para atender aos interesses da Faria Lima. Os interesses da Faria Lima são outros, inclusive o de manter a taxa de juros a 13,75% porque eles ganham com a especulação. Pobre não ganha com isso”, falou.
Editorial colonialista
Haddad sabe que na segunda fase da reforma tributária, quando a renda e o patrimônio estarão em questão, o jogo será ainda mais bruto. “Mas nós vamos divulgar os dados”, afirma. “Como um país com tanta desigualdade isenta de imposto de renda o 1% mais rico da população?”, questiona.
Também em editorial, o jornal O Estado de S. Paulo disse que “espera-se que o governo Lula mantenha, na etapa da reforma sobre renda, o mesmo pragmatismo com que tratou a primeira fase da proposta”. “Disso depende a credibilidade do arcabouço fiscal”, sentenciou. Em outro editorial, o jornal atacou Lula afirmando que o presidente acha que o país não vai bem porque o “financeirismo” prevaleceu sobre o desenvolvimentismo. Segundo o jornal, o Brasil vai mal porque o desenvolvimentismo nunca foi realmente derrotado, numa defesa explícita de que a reforma tributária não pode ter viés equalizador para dar instrumentos e recursos com os quais o Estado possa agir como indutor do desenvolvimento e da reindustrialização do país.
De acordo com o Estadão, “mesmo quando as contas do governo estão em ordem (o que não é o caso no momento), a decisão de subsidiar a aquisição de produtos de consumo corre o sério risco de ser socialmente injusta”, um falso argumento que faz parte do ataque sistematizado da direita aos programas para reaquecer a indústria automotiva e possivelmente a de eletrodomésticos. Em questão está o déficit projetado pelo Tesouro, respondido por Haddad.
Mesmo a barulhenta campanha contra a Venezuela pela via dos ataques a Lula – a Folha chegou a dizer em editorial que ele e o presidente da Argentina, Alberto Fernández, formam uma dupla que está se utilizando de malandragem para ludibriar a União Europeia, numa tentativa radical de manipular o recente acordo sobre as eleições venezuelanas – serve ao propósito de atacar as ideias desenvolvimentistas. Um editorial colonialista do jornal O Globo sobre o “projeto chinês” de ampliar o Brics disse que Lula sonha com a reedição do “velho terceiro-mundismo, o delírio de uma grande aliança de países pobres e remediados para se contrapor a Washington”.
Foto: Osvaldo Bertolino – Fundação Maurício Grabois