Por Headline
Esta semana relembra-se o golpe militar no Chile, conduzido por Augusto Pinochet, ocorrido há 50 anos e que levou à morte o presidente Salvador Allende. As democracias do Cone Sul, nos anos 1960-1970, caíram em sequência, para dar lugar a sangrentas ditaduras militares. Relembramos os golpes, enquanto a extrema direita avança nesses países, negando crimes e tentando reparar a reputação de ditadores. Todas as ditaduras, no Brasil, na Argentina, no Chile e no Uruguai, foram brutais e corruptas. O negacionismo justifica as mortes e as torturas e faz a apologia dos regimes de força.
Pelo menos três características daqueles movimentos golpistas estão presentes. O uso da religião, a pregação de uma moral conservadora que os líderes jamais observaram e um falso liberalismo econômico. Com relação a este último, aparentemente, apenas o argentino Javier Milei seria de fato um libertário, um ultraliberal disposto a desmontar todo o estado. Nenhum deles correlaciona, contudo, liberdade de mercado e liberdade política. Um liberalismo de conveniência e retalhado.
Eles estão entre nós
O ressurgimento da extrema direita mostra, primeiro, que ela nunca nos deixou. Segundo que, como faz historicamente, ela se nutre do ressentimento, da frustração, do medo e da raiva. Em cada país, parte da população se volta para a extrema direita à sua maneira, cada um com suas razões.
No Brasil, a crise socioeconômica do governo Dilma interrompeu a ascensão das classes de renda mais baixa e empobreceu a base das classes médias, provocando frustração das expectativas de grande parte da sociedade. Elegeu Bolsonaro, cujo governo golpista e corrupto fracassou. Mas o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, com uma polícia matadora, homenageando agentes da repressão na ditadura e montado em um tanque no 7 de setembro, candidata-se a liderar a extrema direita.
Na Argentina, os filhos da classe média empobrecida e das classes altas ameaçadas pela decadência do país voltaram-se para Milei. No Uruguai, a crise econômica e social tem levado ao crescimento do apoio a grupos de extrema direita, próximos de Trump e do Vox. No Chile, a polarização em torno da nova constituição e a crise econômica continuam a alimentar a ultradireita.
A vitória de Javier Milei nas eleições de outubro é, até agora, o cenário mais provável. Pode acontecer no primeiro turno, se não houver uma reacomodação do eleitorado em torno da direita moderada de Patricia Bullrich ou do justicialista Sérgio Massa, atual ministro da Economia de um governo que anda mal. Milei pode levar a Argentina à convulsão social e a uma derrocada como país.
Bolsonaro e Trump serviram de modelo para José Antonio Kast, o ultradireitista católico chileno que quase ganhou as eleições em que Gabriel Boric foi eleito em segundo turno. Ele lidera o recém-formado Partido Republicano, próximo ao partido de extrema direita espanhol Vox. Ele mostra benevolência em relação a Pinochet e costuma repetir muitas das promessas que o ditador listava como objetivos de sua “revolução”. Apesar da derrota nas presidenciais, Kast e seu partido avançam no Chile e se tornaram uma força que não pode ser desprezada.
No Uruguai, o partido Cabildo Abierto, de ultradireita, já consegue abocanhar 10% dos votos. Ele cativa os nostálgicos da ditadura e os indignados com a crise econômica. Como no caso de Bolsonaro, parte significativa de sua base eleitoral está nos setores associados aos militares. Sua presença nas redes mostra interseções com os canais onde há maior participação desses setores.
Quando as democracia caíram
Tudo começou no Brasil, que já estava sob uma ditadura militar desde abril de 1964. No sombrio mês de dezembro de 1968, quando teve início o golpe dentro do golpe, o governo do general-presidente Costa e Silva editou o Ato Institucional No.5, que eliminou todas as garantias constitucionais que haviam sobrevivido. Foi uma resposta a manifestações de repulsa ao regime pela sociedade civil, com greves operárias, passeatas estudantis e grandes manifestações populares.
O general-ditador morreu um ano depois e o golpe se consumou inteiramente com a deposição do vice-presidente, o político civil Pedro Aleixo, e a instalação no poder de uma junta militar composta pelos então ministros do Exército, general Aurélio de Lira Tavares; da Marinha, almirante Augusto Rademaker; da Aeronáutica, brigadeiro Márcio de Sousa Melo
Foi um triunvirato breve porque, logo, o verdadeiro dono do poder, o comandante do III Exército Garrastazu Médici seria indicado como general-presidente, ficando como seu vice o almirante Rademaker. Tomou posse em outubro de 1969 para comandar a mais brutal repressão à oposição, armada ou não, inaugurando os anos de chumbo, marcados por censura à imprensa e à cultura em geral, sequestros, torturas, mortes e desaparecimentos.
Em seguida, caíram as outras democracias, com ajuda da CIA e do regime brasileiro. Em 1966, na Argentina, o general Juan Carlos Ongania comandou o golpe militar que depôs o presidente Arturo Illia. Seus quatro anos de poder ditatorial fracassaram. O retorno à institucionalidade democrática, em 1973, permitiu a volta de Perón após longo exílio. Neste mesmo ano, golpes militares derrubaram as democracias no Uruguai e no Chile. Em 1976, novo golpe interrompeu o curso democrático na Argentina. Os quatro países viveram um pesadelo real e sangrento nos anos 1970-1980.
Eu era, então, estudante e olhava para as democracias do Cone Sul, principalmente do Uruguai e do Chile, com um misto de inveja e esperança. O Uruguai porque era a democracia mais longa e estável do continente, desde 1938. Na verdade, a ruptura de 1933, um golpe de estado executado pelo próprio presidente Gustavo Terra, sem participação militar, foi um breve interregno ditatorial que pouco alterou o padrão político uruguaio. Este foi retomado em 1938. O Chile, porque era a democracia mais progressista e acreditávamos, os sonhadores, que poderia ser a primeira democracia socialista da história.
Os caminhos de volta para a democracia
A partir das redemocratizações, que foram muito estudadas, esperávamos que havíamos criado condições institucionais para assegurar a não-repetição de golpes militares e ditaduras. Nenhuma dessas democracias voltou a cair. Mas todas elas vivem o sobressalto do avanço da extrema direita, nos quatro casos saudosista da era ditatorial. Todas enfrentam, em maior ou menor grau, ameaças ao estado democrático de direito.
O primeiro a voltar à democracia foi a Argentina, em 1983, após os fracassos dos dois últimos ditadores, o general Leopoldo Galtieri e Reynaldo Bignone. Galtieri tentou se salvar declarando guerra contra o Reino Unido na disputa pelas ilhas Malvinas. Este último decretou a autoanistia e determinou a destruição dos arquivos de sangue com as provas dos crimes de estado. Em 1983 foi eleito Raúl Afonsin. Foi uma retirada incondicional dos militares, após o último ditador, o general Alejandro Lanusse.
O Uruguai voltou em 1985. O retorno da democracia começou com a derrota da ditadura no plebiscito de 1980, convocado pelo próprio regime para ratificar a reforma da constituição. As eleições nacionais de novembro de 1984 determinaram o fim do período autoritário e, em 1985, assumiu o governo legitimamente eleito, de Julio Maria Sanguinetti. Foi uma saída negociada diretamente entre os partidos políticos e os militares, com a presença do Frente Amplio, uma coalizão de partidos de esquerda formada no exílio.
Em 1988, Brasil e Chile tomaram o caminho de volta. O Brasil, após as imensas manifestações pelas Diretas Já e pela Assembleia Constituinte, finalmente teve promulgada sua Constituição democrática e realizou a primeira eleição direta para presidente em 28 anos.
No Chile, a polarização partidária e a divisão da oposição ajudaram a prolongar a sobrevida do ditador Pinochet e abortaram a transição em 1984. Foram mais cinco longos anos de ditadura. Em outubro de 1988, Pinochet convocou o plebiscito propondo que ficasse mais oito anos no poder e perdeu. A Concertación nasceu como uma coalizão pelo Não, no plebiscito e tornou-se a principal força política no Chile e elegeu cinco dos oito presidentes do novo período democrático. O primeiro deles foi Patricio Aylwin. Mas os governos democráticos jamais conseguiram, ou quiseram, livrar-se da Constituição outorgada pelo ditador Pinochet. A luta por uma nova constituição se tornou o epicentro da crise política que o país vive atualmente e reacendeu a ameaça da extrema direita.
As análises detalhadas desses casos de redemocratização, o interesse por eles era plenamente justificável, mostrou que, em nenhum desses países o processo foi inteiramente resolvido. Especialmente no Brasil, foi um retorno tutelado e, até hoje, vivemos assombrados pela ameaça do artigo 142 da Constituição, que lhes confere os militares o direito de intervenção na política.
No Chile, considera-se que houve uma democratização parcial porque se manteve a ordem constitucional da ditadura, com ajustes legislativos insuficientes para superar suas limitações.
No Uruguai, a transição negociada promoveu nova estabilidade constitucional e democrática. O sistema político neste país é tão consolidado que, com todas as mudanças, a bipolaridade política não se desfez inteiramente.
A Argentina vive, desde o fim da ditadura, uma crise permanente. O peronismo, ainda a principal força, não tem projeto ou visão que lhe permita enfrentar a decadência do país. Os outros partidos lutam para sobreviver por alguns ciclos eleitorais. A hiperinflação devastou a classe média e seu partido de direita moderada, a Unión Cívica Radical.
Com ou sem justiça de transição
A justiça de transição consiste na revisão judicial das violações de direitos humanos e de lesa-humanidade, com o objetivo de promover a verdade, a aplicação da justiça, reparações e garantias de não-repetição. Neste entendimento amplo, nem os países do Cone Sul, nem o Brasil conseguiram completar o processo da justiça transicional. Todavia, uns foram bem mais longe do que outros. O Brasil avançou quase nada.
Brasil e Uruguai aceitaram a validade da lei de anistia outorgada pelos ditadores em benefício próprio. Desta forma, no Brasil, as ações dos governos Fernando Henrique Cardoso e Lula, que culminaram na Comissão da Verdade instalada pela presidente Dilma Rousseff, tiveram resultados modestos. Como sabemos, nunca houve uma condenação de militar por atos de violência estatal extrema e crimes contra a humanidade.
No Uruguai, com a transição negociada e uma cultura política de consenso, não se tomou nenhuma medida até 2006, quando a justiça condenou o ex-presidente Juan María Bordaberry, o ex-ministro de Relações Exteriores, Juan Carlos Blanco, e dois militares que cometeram delitos de lesa-humanidade. Condenações na justiça ordinária.
No Chile a aplicação da justiça de transição foi muito gradual. Durou, pelo menos de 1990 a 2012, e sofreu alguns reveses. De 1990 a 1998, nada se passou e prevaleceu a autoanistia decretada por Pinochet. A Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação, a Comissão Restig, estimou que houve 3197 vítimas de execuções, desaparecimentos e assassinatos entre 1973 e 1990. Em 1998, após investigações conduzidas pela Fundação Allende, na Espanha, Pinochet foi investigado pelo juiz de instrução Baltasar Garzón. Deste inquérito resultou dura e abrangente acusação de genocídio, terrorismo e tortura. Crimes capitulados pela legislação espanhola. Pinochet, em consequência, foi preso em Londres. Só, então, o Chile tomou iniciativas para pedir a extradição e manter a prisão do ditador.
Na Argentina, a justiça de transição começou como ruptura. Apesar de intensa mobilização militar, inclusive conseguindo aprovar restrições legais como a Ley de Punto Final, de 1986, e a Ley de Obediencia Debida, de 1987, e decretos de indulto do governo Menem, a justiça reabriu os processos e os ditadores foram condenados e presos.
O negacionismo da extrema direita em todos estes países recusa-se a aceitar o cometimento de crimes. Há tentativas de reabilitar a reputação dos ditadores. O crescimento do apoio à extrema direita na sociedade mostra que há muito ainda a fazer para que lembremos do horror e não deixarmos que se repitam as atrocidades do passado.
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