Por MontesClaros.com
“O senhor é o senhor Luiz?”, perguntou o médico. “Sou”, respondeu o rapaz. O senhor precisa ser forte para ouvir o que vou lhe dizer. “Seu filho nasceu morto”, continuou o doutor. “É preciso ser mais forte ainda, porque sua mulher também morreu”. Assim Luiz Inácio Lula da Silva recebeu a notícia da morte de Maria de Lourdes da Silva, sua primeira mulher. Era manhã de segunda-feira, 7 de junho de 1971. Lourdes, nascida na zona rural de Montes Claros, foi, como seu marido, retirante da mesma seca de 1952. Unidos pelo destino, se conheceram em um bairro pobre de São Paulo, onde eram vizinhos. Em reportagem especial dos repórteres Paulo Narciso e Leo Drumond, o HOJE EM DIA refez esta parte da biografia do presidente, percorrendo, ao lado de sua primeira sogra, dona Hermínia, e do cunhado e amigo de juventude, Jacinto Ribeiro, o Lambari, a vila onde nasceu Lourdes, no Norte de Minas. Páginas 7 a 11, Especial.
Lula, até hoje, está convencido de que as mortes de sua primeira mulher e do filho foram causadas por negligência. Em depoimentos a Denise Paraná, na biografia autorizada “Lula, o Filho do Brasil”, ele revela a revolta de sua convicção:
“A Lourdes tinha ficado grávida e, no sétimo mês da gravidez, ela pegou hepatite. Ninguém me tira da cabeça que ela morreu por negligência da rede hospitalar do Brasil, por problemas de relaxamento médico. Porque ela estava com anemia profunda e uma hepatite crônica. Ela poderia ter sido melhor tratada. Morreu sem que houvesse nenhuma assistência para ela. Eu fui ao hospital e vi. Ela gritava, ela gritava, ela gritava. Não tinha um médico para atender, não tinha ninguém. Sinceramente, eu tenho muitas restrições a esses médicos que estavam no hospital. Hoje, eu tenho consciência de quanto um desgraçado de um pobre passa nos hospitais”.
Fugitivos da mesma seca de 1952 nos sertões de Pernambuco e de Montes Claros, a 3 mil quilômetros de distância entre si, Lula com 7 anos, Lourdes com 3, os dois se encontraram em São Paulo já mocinhos, vizinhos de uma casa de parede-meia no bairro operário da Ponte Preta.
Abandonada pelo marido quando estava grávida de Lula, já nos dias de nascer, dona Lindu recebeu carta do segundo filho mais velho, Jaime, que a chamava para São Paulo, supostamente a pedido do marido. O penúltimo dos filhos e caçula dos homens, Lula, havia escapado de morrer aos 4 anos, quando uma jumenta o ergueu pela boca, numa mordida, e só o largou depois de receber uma punhalada no pescoço.
Sem recursos para sustentar os filhos, dona Lindu vendeu as terras secas por 13 mil cruzeiros, vendeu o relógio, vendeu o jumento, vendeu os santos e as fotografias de família, e tomou o “pau-de-arara” com 7 filhos, um irmão, cunhada e sobrinho. Deixou apenas o cachorro, que aos cuidados de um tio, parou de comer e morreu de saudade dos meninos. Enquanto esperava o caminhão “pau-de-arara”, que atrasou, ela colocou os filhos num quartinho na bodega do Tozinho, e fechou a porta, para que o cachorro “Lobo” não visse os meninos e os meninos não vissem o cachorro. Dona Lindu estava determinada: “Vamos embora, ou bem ou mal, para morrer de fome, nós morremos em São Paulo”.
A viagem até o marido e o segundo filho, em Santos, durou exatos 13 dias e 13 noites, de l0 a 23 de dezembro de l952. Lula – que nunca havia saído de Vargem Comprida – viajou com uma única camisa, que chegou podre a São Paulo. O percurso foi feito todo na terra; havia poucos ônibus e os raros postos de gasolina não dispunham de banheiros. O motorista do “pau-de-arara” era quem punha ordem na hora das “necessidades” e disciplinava no meio do mato: “homens para um lado, mulheres para o outro”.
Lula descreve o “pau-de-arara”
– É uma tábua atravessada na carroceria do caminhão. Não tem nem encosto atrás. Não é um banquinho de madeira. É uma tábua grudada na carroceria. Você senta e não tem encosto. A gente pode cair. Tinha umas 30, 40 pessoas dentro do caminhão. A gente dormia na calçada. Se esticava e começava a dormir ali. Ás vezes, com um cobertorzinho. E, de repente, a gente acordava embaixo da chuva e tinha de correr para debaixo do caminhão. Não cabia todo mundo. Ficava todo mundo amontoado debaixo do caminhão.
Ainda na saída de Pernambuco, numa noitinha, bateram na lataria da boléia, indicando que alguém estava com “precisão”. O caminhão parou no meio do mato e Lula e o irmão “Frei Chico”, 3 anos mais velho, que vinham sentados no banco de trás com as pernas de fora foram os primeiros a saltar. Mas, estava escuro, acharam o lugar perigoso, e o motorista arrancou com o caminhão. Lula e o irmão, deixados para trás, gritavam, correndo: “pára, pára, pára”, enquanto dona Lindu se desesperava na carroceria com os outros 5 filhos.
Na viagem
Quando entraram em Minas, os retirantes desceram pelo leste, em direção a Teófilo Otoni e Governador Valadares, quando poderiam t ter seguido pela rota de Montes Claros, muito usada pelos retirantes nordestinos, especialmente pelos que vinham pelas “gaiolas” do Rio São Francisco até Pirapora. ”Frei Chico”, que se declara ateu apesar do “frei” no apelido, diz que o caminhão viajava com a lona abaixada e que se lembra apenas da cidade de Vassouras, no Rio. Ele tinha 10 anos.
Se tivessem passado por Montes Claros, poderiam ter cruzado com uma camioneta que, no mesmo mês do mesmo ano, levava os retirantes Lourdes e sua família para a gare da Central do Brasil, onde tomaram o “trem baiano” para São Paulo.
O pai de Lula era estivador no Porto de Santos e se surpreendeu com a chegada da primeira família, naquela véspera de Natal. Com a prima de dona Lindu, ele já tinha filhos de 6 e 7 anos e a primeira coisa que perguntou, ao ver a família que não esperava, foi pelo cachorro “Lobo”, que havia ficado no sertão. “Cadê o cachorro?”. Lula lamenta: “Na verdade, meu pai estava pouco interessado que minha mãe viesse para cá, porque ele queria viver a vidinha dele com a mulher que ele tinha aqui, que era uma prima de minha mãe. Meu pai tinha saído de Pernambuco com essa prima, ela tinha desaparecido, mas ninguém tinha feito a relação entre o desaparecimento dela e a vinda do meu pai”.
E meu irmão, na carta, não conta essa história para minha mãe, só diz que meu pai queria que ela viesse para cá.
O estivador Aristides, carregador de sacos de café, bem ou mal, acolhe a primeira família, transfere a segunda mulher para outra casa e os aloja na casa principal. Ficava dois dias numa casa, dois dias na outra. Acabou pai de 18 filhos, oito com dona Lindu, fora os 4 que morreram, e 10 com a prima dona “Mocinha”. Os filhos, todos os filhos, não têm boas lembranças dele, e Lula chega a dizer nas suas memórias que o pai “cuidava mais dos cachorros que dos filhos”.
Tempos depois, quando ganhou uma “mangueirada” na cabeça, dona Lindu resolve, agora por iniciativa dela, deixar o marido, cansada dos maus tratos contra ela e os filhos. “E aí, para nós foi ótimo. Nós ficamos em liberdade? A gente passou a viver melhor. Era uma pobreza com liberdade. Então, a separação dos meus pais, no fundo, no fundo, foi uma grande liberdade” – comemorou Lula, que quase só podia trabalhar, pois era proibido de estudar pelo pai “analfabeto” que adorava comprar jornais quando andava de barco, “lendo” jornal muitas vezes de cabeça para baixo.
Os três irmãos mais velhos já trabalhavam e Lula e “Frei Chico” vendiam laranja, tapioca e amendoim, pelas ruas de Santos, além de carregarem feixes de lenha. Aos 10 anos, Lula vai com a mãe e os irmãos para São Paulo. Eles mudaram para um barraco, que “era tão barraco, que um dia despencou”. Algumas das irmãs já trabalhavam como empregadas domésticas e toda a mudança se resumia “numa tina e uma lata de leite Mococa, para guardar o pão e uma faca”. O que se tornaria presidente da República se lembra de que todos gozavam do seu pescoço curto: “eu era assim de tanto carregar lenha”.
Engraxate, tintureiro, telefonista, Lula ia mudando de emprego conforme mudava de endereços, mas servido de uma calça só, que a mãe lavava aos domingos. O sonho era ser motorista de caminhão, mas este dia não chegava. “Foi um período muito ruim. Muita miséria. Mas eu era um moleque feliz. Porque a gente era pobre, mas a gente tinha um mundo à nossa disposição”.
Na Vila Carioca, em mais de um endereço diferente, ele consegue entrar para o Senai, “no melhor período da minha infância”, toma o primeiro “fogo” da vida, um porre de vinho e cerveja, e começa a trabalhar na Fábrica de Parafusos Marte e, depois, na Fábrica Independência. Aqui, como torneiro-mecânico trabalhando à noite, o braço da prensa “fechou” e esmagou o dedo menor da sua mão esquerda. Com a indenização de 350 mil cruzeiros, Lula comprou móveis para a mãe e um terreninho. Mais: o dedo esmagado, envolto em curativos, despertaria a dó de Maria de Lourdes, que logo se tornaria vizinha. Era o encontro da moça de Montes Claros com o rapazinho de Vargem Comprida, em São Paulo, uma cidade já com milhões de habitantes.
Lambari
Era l965. Lula foi com a família morar na Ponte Preta, na Vila São José, divisa de São Caetano e São Paulo. Ele estava com um dedo a menos na mão esquerda, estava desempregado e “tinha muita miséria em casa”. Mas, uma miséria significativamente menor. A família já possuía um fogão de duas bocas e muitos catres velhos. ”Eu e o meu irmão colocamos o fogão bem no alto e nós íamos com muito orgulho em cima do caminhão. Afinal de contas, a gente já tinha um fogão”.
O seu plano de vida estava definido: “tudo o que eu queria era o que todo mundo quer – ter uma vida tranqüila, ganhar meu salário. Queria casar e constituir minha família sem nenhuma ilusão”. Com 20 anos, nada sugeria o futuro líder de massas, bom orador, desinibido, convincente. Ao contrário, era tímido, trancado mesmo, pouco saliente, pouco “saído” – resumia sua mãe. Queria só ter casa, mulher e filhos Para isso, o destino havia feito sua parte.
Ao lado da casa, do outro lado da parede, morava Maria de Lourdes, com pai, mãe e três irmãos. Os retirantes de Montes Claros haviam dado a volta pelo mundo, no interior de São Paulo, e também acabavam de chegar, ali. Todos se tornaram amigos. Lambari, o melhor de todos – o amigo da juventude.
Mas, havia enchentes. A água do ribeirão teimoso vinha pela janela, misturada com água dos vasos sanitários, e acordava Lula quanto atingia o colchão. Resolveram mudar de novo e foram para o Jardim Patente. A família de Lourdes, com o mesmo problema, também se mudou.
Lá, os amigos, “amigos mesmos”, conhecidos de muitos anos, companheiros de festas, de bailes, de enchentes, de desemprego, de infortúnio, resolveram se namorar. Numa festa, Lula tomou três conhaques, criou coragem e fez a proposta. Lambari ajudou no consentimento, mas não ficou atrás. Passou a namorar a irmã de Lula mais nova, Tiana, ou Ruth, conforme lhe chamavam pelo nome de batismo ou pelo nome do registro civil.
Esta irmã tem a memória do clima: “Nossa adolescência foi uma fase gostosa. Ficamos conhecendo dona Hermínia, que virou sogra dele. Nós fizemos amizade, “uma amizade gostosa”. Lula nunca foi de namorar. A primeira namorada dele foi Lourdes. Tinha o Jacinto, que hoje a gente chama de Lambari, tinha o Toninho e o Zezinho. Tinha os bailinhos em casa de família, domingo à tarde. Tocava Ray Coniff, Carlos Alberto, Roberto Carlos. A gente bebia refrigerante”.
Maria de Lourdes, – “a morena de cabelos compridos, muito bonita, conservadora, sem nenhuma formação política, muito trabalhadora”, segundo Lula – já trabalhava como tecelã. Seus patrões a aconselharam e ela repetiu a Lula que ele não deveria se envolver com sindicatos. Sem maior empenho, ele tomou posse como diretor do sindicato em 24 de abril de l969 e se casou no dia 25 de maio, um mês depois.
A festa de casamento foi na casa da irmã Ruth, na Paulicéia, com batatinha, pão, sanduíche, bolo e guaraná. “Foi um casamento que tinha tudo para dar certo. E eles viviam muito bem”, recorda-se a irmã. Com as economias dos dois, compraram casa na rua que tinha 4 nomes, à medida que se encurvava. Sogros e cunhados moravam na rua Verão e Lula e Lourdes, na rua Outono. A casa tinha 2 quartos, sala e cozinha, logo reformada para receber o primeiro filho. A gravidez transcorria tranqüila, até que, no 8º mês, Maria de Lourdes apareceu muito pálida, com os olhos amarelos.
Nas suas memórias, Lula descreve
“Foi nesta casa que eu fiquei viúvo. Eu lembro que eu fui visitar ela num domingo. Ela estava numa situação deplorável no hospital, com um monte de gente no quarto. Ela gritava, eu fui chamar a enfermeira, a enfermeira não quis atender. Na segunda feira, eu fui levar a roupinha da criança. Cheguei lá e ela estava morta. Meu filho estava morto. Isso marcou muito a minha vida. Como morreu a Lourdes, morrem milhões de pessoas por aí nesse país sem ter o menor tratamento médico. Nós tínhamos planejado um filho, a gente queria ter um filho.”
O velório de mãe e filho foi na rua Outono. O piso de tábua corrida afundou com o peso de tanta gente e a câmara ardente foi transferida para a copa. Lula descreve o estado em que ficou: “Eu fiquei muito tempo meio bobão. Eu ia no cemitério todo domingo, eu levava flores para colocar no túmulo dela. Eu, às vezes, ia sair de noite para qualquer lugar, mas quando eu ouvia música….não agüentava… e voltava para casa. Eu não tinha mais vontade de sair. Eu fiquei 3 anos e meio deprimido. Eu fiquei muito tempo meio borocoxô. Eu perdi o sentido da vida. Não tinha mais vontade de nada. Eu passei 3 anos sem namorar”.
(Por esta época, Lula conheceu a enfermeira Miriam Cordeiro, com quem teve uma filha. Começou a namorar Marisa, viúva de um metalúrgico, filho único, que nas horas vagas ajudava o pai no táxi e foi assassinado dentro do carro, num assalto. Lula era freguês do “fusquinha” do seu Cândido, que no táxi não parava de elogiar a beleza da nora viúva. Depois, Lula conheceu Marisa no Sindicato dos Metalúrgicos, casou-se com ela, registrou em seu nome o filho dela (Marcos) e tiveram mais 3 (Fábio Luiz, Sandro Luiz e Luiz Cláudio). “Seu” Cândido e a mulher foram padrinhos do primeiro filho do casal, mas ele morreu, também assassinado num assalto, como o filho).
Um amor
Enquanto o caminhão “pau-de-arara” conduzindo Lula descia de Vargem Comprida, hoje Caetés, , uma outra família deixava o Norte de Minas. O lavrador Manoel de Bitu, irmão do padrasto de dona Hermínia, morava em Ibitinga, interior paulista, e queria que eles fossem para lá. O pai de Lourdes, João Evangelista, havia lançado sementes na encosta pedregosa do Morro Agudo, em plena estação das águas, mas a roça de milho e feijão não brotou – era a seca, na época das chuvas, a pior.
A mãe de dona Hermínia, casada pela segunda vez, havia morrido de parto, junto com a criança. Brasinho, mulato forte muito afeiçoado à menina Lourdes, de 3 anos, então lidera os retirantes em direção ao seu irmão, na cultura de algodão na fazenda paulista. Venderam 2 porcos, 2 cavalos e galinha e seguiram: Brasinho, dona Hermínia, com 22 anos, o marido Evangelista, o irmão dela, Mané Codorna e os 4 filhos do casal – Toninho, de 8 anos, Jacinto (Lambari) de 6, Lourdes, de 3, e Zezinho, de apenas 8 meses.
Os 48 quilômetros de Morro Agudo à gare da Central do Brasil em Montes Claros foram vencidos numa camioneta. Duro foi esperar o trem “maria-fumaça”, arranchados na calçada da Praça da Estação, com centenas de outros retirantes. Depois de dias de espera, quando fazia uma caçarolada de abóbora, o apito estridente convocou os retirantes, a abóbora foi atirada no saco de farinha, e todos se precipitaram no vagão de segunda e última classe.
A rotina nos dez dias seguintes até São Paulo, de baldeação em baldeação, é a epopéia de todo retirante que o “trem do sertão” levou e trouxe de São Paulo, sempre cheio, sempre melancólico, sempre carregado mais de saudades do que de apinhados passageiros.
Lances dramáticos não faltaram àquela caravana de mineiros. Toninho e Jacinto (Lambari) arrancaram algum dinheiro dos menos infelizes com a voz infantil, de 8 e 6 anos, que cantava, e suavizava, com a música sertaneja, o drama reprisado de outros. (Lambari, até hoje, canta musica sertaneja, toda 6ª feira, no restaurante Chabocão, em São Bernardo).
Aflição maior viveu dona Hermínia, futura sogra do presidente da República. Exausta, em pânico, ela apertava contra o peito o caçula Zezinho, de 8 meses – hoje afilhado de casamento de Lula. O menino tinha bronquite e a orientação do chefe do trem não admitia exceções: “quem morrer na viagem, vai ser atirado pela janela”. E toda vez que passava o chefe do trem, e olhava para a criança com bronquite, o chefe perguntava – “tá doente?”. Ela pronta respondia: “não senhor, não senhor, tá sadio, tá bom”, e segurava o menino mais forte, contra o peito, e o retinha, com a janela fechada.
Foi assim, nos mil e tantos quilômetros, 10 dias e 10 noites, dormindo no chão, nas calçadas. Na “imigração”, em São Paulo , e nas estações por onde passaram, os quatro meninos incharam o braço de tanto tomar vacina, 4 ou 5 num dia só. É que o pai Evangelista, doente do pulmão, tinha esperança de que as filas que se formavam em cada estação fossem para servir comida – mas eles\serviam vacinas. Manoel de Bitu os esperava em Ibitinga, interior de São Paulo. Foram depois para o plantio de mandioca na fazenda Ronca, onde havia escola, que não freqüentavam, porque dona Hermínia os trancava em casa para sair cedo trabalhar na roça.
Na fazenda Barreiro, ficaram 9 anos como meeiros, e o fazendeiro sem filhos – Ernesto Saleno – quis adotar Lambari, com a pronta resistência da mãe, que preferia vê-lo caminhar 4 kms, todo dia, para ir a escola – ele e os irmãos. Foi nesta época que os quatro ganharam registro de nascimento, atabalhoadamente providenciado pelo pai com o recurso de memória que dispunha: “este nasceu na sementeira do arroz…, aquele na colheita do milho…, a menina durante a chuvarada…”. Os registros apontam Miralta, distrito de Montes Claros, como o local de nascimento, e as data são imprecisas.
Nesta época, por 1 ano e precisos 26 dias, dona Hermínia foi tratar-se do pulmão, também ela, no Hospital Sanatório de Araraquara, e a menina Lourdes, assumiu o comando da casa. Seguiram depois para Bariri, já como arrendatários de terra que produzia amendoim, milho e mamona. Lambari fazia o curso de torneiro-mecânico do Senai em Ibitinga, bancado pelo fazendeiro que o queria adotar, e em Bariri compraram casa na cidade, onde passam a residir. Lambari arrendatário de uma torneraria, Toninho trabalhando na padaria e, Lourdes, na fábrica de óleo, enquanto completava o curso de corte e costura. Os pais eram “bóias-frias”na colheita de café e algodão.
O ENCONTRO
O primo e servente de pedreiro Santinho, posteriormente levado de Montes Claros e adotado, já estava na capital de São Paulo e os chamou para lá, no vácuo do golpe de 64, começo de 65. Lambari alugou a casa 4 da rua 35, na Ponte Preta, e dias depois de trazer a família, era hora de receber, na casa ao lado, aquela família pernambucana, numerosa, encarapitada no caminhão que vinha da Vila Carioca e que exibia o fogão de duas bocas como precioso troféu.
Tangidos pela mesma seca, afinal estavam reunidos na parede-meia, que anexaria os dois destinos de retirantes: os de Minas, comandados por dona Hermínia, e os de Pernambuco, chefiados por dona Lindu, aquela mulher paciente e calma, brincalhona e otimista, incapaz de qualquer murmúrio ou queixa.
Sem móveis, sem nada, 8 pessoas no quarto e cozinha únicos, mas ainda assim mais confortáveis do que os vizinhos de Vargem Comprida, 10 ao todo (8 filhos e o primo Zé Graxa). Os de Minas passavam o dia com o radinho a pilha seguro na mão, no meio da sala, ouvindo Zé Bétio.
Lula era o rapazinho de bicicleta, que ficava na porta, mão na parede, num vai-e-vem eternos. Lourdes, com 17 anos, foi trabalhar na Tecelagem Damatex, de onde saiu para casar-se com o futuro presidente da República, cedendo a vaga para a prima Heloísa, sobrinha de dona Hermínia, que hoje mora em Montes Claros.
Lula recebia o seguro do dedo decepado e o ferimento chamou a atenção, e a dó, de Lourdes. Ele e Lambari saiam juntos para procurar o emprego que não havia em lugar nenhum. “Freio Chico” já era soldador e membro do “partidão”, e a simpática “Maria Baixinha”, enfermeira. Inventaram então os “bailinhos” de domingo, durante o dia, as excursões ao pico do Jaraguá, as sessões de cinema, as missas.
Lourdes, ainda só amiga, podia contar com Lula para toda festa, onde ela sempre queria demorar mais do que ele. Os japonesinhos ali sempre juntos, Olavo e Kiva, o primeiro virou padrinho de casamento e, o segundo, foi o que Lula teve de\superar na preferência de Lourdes.
Vieram as enchentes, repetidas. Com o dinheiro da casa de Bariri compraram um imóvel na mesma rua 4, enquanto o pessoal de Lula, cortido pelas águas, foi para a Vila São José, a 3 quarteirões, ‘depois do rio”. A casa própria não intimidava a enchente e foram para o Jardim Patente, sempre na mesma região do Ipiranga, na fronteira de São Bernardo.
Dois meses depois, a família de Lula chegava à Vila Patente, instalando-se numa quadra acima. De tanto procurar emprego, na crise de 1965, Lula chorava: “eu, as vezes, parava no caminho e chorava muito…porque você perde a perspectiva”. A sorte começava a virar. Cansados de receber o mesmo “não” juntos, Lambari propôs, Lula aceitou, e os dois passaram a procurar empregos separados. No primeiro dia, um voltou torneiro-mecânico da Volks e, o outro, torneio-mecânico da Villares.
Os amigos se aproximavam mais. Lula, empurrado por 3 conhaques, passou a namorar Lourdes. Lambari escolheu Ruth, a última dos irmãos de Lula, mas demorou pouco o namoro. Dona Lindu sabia que ele namorava outras (“eu era sem vergonha, mesmo”) e o escorraçou como namorado da filha. Ao chegar em casa às l0 horas da noite, conta Lambari, Lula estava no sofá, namorando a irmã: – “Ô, meu, sua mãe já correu comigo de lá. É bom você também pegar sua linha. “Taturana” respondia: – “Dá um tempo, fica na sua.” E ficava.
Mais uma vez, as duas famílias mudaram de endereço. Lula foi para a Paulicéia, em São Bernardo do Campo, e dona Hermínia mudou-se para a rua Verão, nº 10, C , na Vila das Mercês, onde está até hoje, na companhia de Lambari, que se descasou.
Lula namorava lá, lá assistiu Lambari construir sua habitação sobre a laje no terreno de 5 metros por 25 e, de “roupinha branca e namorada a tiracolo, jornal domingueiro na mão, gozava o cunhado, misturando a masseira: “viu o que acontece, Lambari ?…, você não quis estudar…”. Na rua Verão, foi testemunha da dificuldade dos sogros para pagar a segunda prestação da casa, quando o imóvel próprio da Ponte Preta foi vendido a um motorista de ônibus.
As enchentes desvalorizaram a casa. Toda pessoa que chegava para comprar, via a marca dágua na parede, media a altura dos filhos, via que ela dava no pescoço deles , e desistia.
Um motorista de ônibus comprou, pagou a primeira prestação e desistiu da segunda, porque nova enchente levou o paletó e os 800 cruzeiros que havia no bolso do paletó para pagar a prestação restante, deixando em dificuldade a família que também devia a Segunda prestação.
Da distante Paulicéia, em São Bernardo , Lula vinha namorar todas as noites. Na volta, cansando de esperar ônibus na via Anchieta desistia, retornava a pé e dormia na casa da sogra (“eu não ia pela estrada das Lágrimas, eu ia pela Marginal”). Lula achava cedo para casar, mas as circunstâncias amargas, segundo ele, o levaram a precipitar a escolha: – Eu vivia uma vida desgraçada, eu tinha de catar bituca de cigarro no chão para fumar. Eu nunca tinha dinheiro para comprar o cigarro que eu gostava, que era o Continental. Eu comprava Kent. Então, quando eu resolvi casar eu disse: “Olha, já que a gente esta nessa vida desgraçada, sustentando casa, então vamos casar de uma vez e a gente se vira”.
Casaram-se na Igreja Nossa Senhora das Mercês, em 24 de maio de l969. Dois dias antes, haviam se casado no civil, ele de terno muito bem cortado, todo empertigado. Na despedida de solteiro, na Paulicéia, Lula quis reter a noiva para a primeira noite, mas dona Hermínia não permitiu, irredutível, mandando esperar o dia da igreja. Conciliadora, dona Lindu decretou: a noiva dorme aqui, o noivo vai dormir com a sogra, na Vila das Mercês. Lula protestou em vão – “mas, eu já sou casado”.
O casal foi morar no Moinho Velho, de aluguel. Depois de l ano, estava no novo nas vizinhanças da família mineira, na rua torta que começava como Primavera, evoluía para Verão, descia para Outono e acabava como Inverno. Dona Hermínia morava na rua Verão e Lula, agora na casa própria, se instalou na rua Outono.
A filha Lourdes ficou grávida e o casal – ele na Villares Equipamentos e ela tecelã da Datamex – construíram um quarto para a criança. A gravidez foi muito bem até o 8º mês. Tanto os médicos do emprego, quanto os particulares, diziam que tudo ia bem. Não ia.
O tom de gema de ovo no olho de Lourdes denunciava uma doença hepática não descoberta pelos médicos. Foi preciso que os parentes alertassem e Lula insistisse para que ela ficasse internada, numa quinta feira, no Hospital Modelo, em São Paulo. Para os médicos, as dores – queimação no estômago e vômitos prolongados – que faziam Lourdes gritar eram dores normais da gravidez.
Dona Hermínia conta que foi ao hospital, no sábado, acompanhada de Lula e de duas noras, levando frutas. A filha comeu uma pera, desta vez não vomitou, e todos voltaram para a casa, mais animados. No domingo, na visita coletiva das 14 horas, dona Hermínia estava de volta, com Lula. Os médicos, enfim, diagnosticaram a hepatite e a colocaram no isolamento, gemendo. Desesperada, a mãe perdeu-se no hospital e um médico a tranqüilizou – “está em trabalho de parto, é normal”. Lula passa mal e toma uma tranqüilizante, enquanto a sogra vai embora sozinha, desolada.
Na noite de domingo, Lula e Lambari, com esposa e cunhada, retornam ao hospital Modelo. O médico mandou esperar e depois autorizou que o irmão desse uma olhada na doente, que estava sedada e tinha tomado remédio para induzir a dilatação. Pela porta entreaberta, Lambari viu que Lourdes dormia.
O médico, enfático, disse aos cunhados: “Luiz, a criança está morta dentro da barriga, mas sua mulher não corre nenhum perigo. Ela está muito bem. Amanhã, traga a roupa da criança para o enterro”. Lambari se lembra que Lula aceitou o inevitável e pediu que lhe emprestasse dinheiro para o enterro do menino. Foram juntos comunicar a dona Hermínia que a filha não corria perigo. A mãe relutou, achou que estava sendo enganada, disse que a filha não escaparia e foram dormir.
Na segunda feira, 7 de junho de 1971, Lula, a mulher de Lambari e a cunhada Luzia foram para o Hospital. Lambari estava trabalhando na Volks, quando foi chamado pelo departamento social, que o mandava seguir para o hospital. Imaginou que era o dinheiro do sepultamento, passou no banco e foi. Encontrou-se com Lula, a cunhada e a esposa, na recepção, mas apenas os dois homens subiram para a porta da sala de parto.
As enfermeiras os viram chegar, e comentaram – “a família tá aí”. Esperaram muito. O médico saiu.
_ O senhor é o senhor Luiz?
_ Sou.
_ O senhor precisa ser forte para ouvir o que vou lhe dizer. Seu filho nasceu morto.
_ Eu já sabia. O médico me explicou, ontem.
_ O senhor precisa ser mais forte ainda, porque sua mulher também morreu.
Lula fez vômitos e encostou a cabeça na parede. Com a cabeça sempre na parede, ele girava o corpo contra a parede, girava… girava… girava…
(Na noite de domingo, soube-se depois, logo que Lula e Lambari saíram do hospital, Lourdes acordou, chamou pela mãe, chamou por Lula, e vomitou sangue. “A noite toda, ela vomitou pedaços do fígado”. Às 5h15m da manhã, os médicos retiraram a criança a ferros. Ás 7h15m, Lourdes morreu).
Lula e Lambari foram receber os corpos na pedra do necrotério. Estavam cobertos por lençóis brancos e identificados. No lençol maior, a etiqueta indicava – Maria de Lourdes Silva. O “meninão”, de quase 4 quilos, tinha uma fita colante escrita “nati-morto”.
Lula explodiu:
_ Esses “fdp” colocaram este nome. Não era nem este o nome que eu queria para o meu filho!
(O nome – soube-se também depois – seria Fábio Luiz, o nome que Lula repetiu no primogênito do segundo casamento).
De volta
Dona Hermínia apoia-se numa bengala para caminhar. A intensa simpatia e a simplicidade minimizam este detalhe, mas ela sofreu desgaste na cabeça do fêmur e o ex-genro, já famoso, consegui-lhe uma cadeira de rodas, que ela não mais precisa.
Morando na mesma e modesta casa da Vila das Mercês, onde um presidente da República noivou e casou, ela ficou viuva em 1990. Mora com o filho Lambari e sai muito, anda por toda parte. Anda principalmente pelos bingos, e a voz da neta na secretária eletrônica do telefone resume: “Você ligou para dona Hermínia. No momento, fui até o bingo. Se demorar, é porque fiquei rica. Se não, voltarei logo. Por favor, ligue mais tarde. Obrigada”.
O olhar sereno, a voz mansa e doce, o cabelo pintado com discrição, nada sugere o sudário de uma vida de retirante e de mãe que sepultou a filha, a única. Aos 73 anos, está mais conservada que o irmão Mané Codorna, 10 anos mais moço, que foi com ela para São Paulo, e Henrique, de 70, que já a esperava lá, na seca de 1952.
Depois de 50 anos de ausência, a convite do HOJE EM DIA, ela levou o filho Lambari para conhecer, reconhecer, a casa de onde partiram, ele com apenas 6 anos. Foram com ela dois irmãos, um residente no Furadinho natal, e o outro morador de Montes Claros. Foram também filhos, sobrinhos e netos, rever a casa no meio do mato.
Já na entrada de Furadinho, o pequeno fazendeiro João Gonçalves de Souza, de 75 anos, reconhece dona Hermínia e recorda:
_ Eu assisti o seu casamento, em Vista Alegre. A senhora tinha 13 anos, muito bonita. O padre ainda perguntou – você ao menos sabe fazer um almoço?
Não sabia.
Mas sabe o fazendeiro, montado com garbo no cavalo, que ela é a primeira sogra de Lula. Aliás, “Lôla, aquele que manda em nós”.
Furadinho é um povoado a exatos 43 quilômetros do centro de Montes Claros. São minifúndios, ocupados por 40 famílias, quase todas evangélicas da Igreja de Deus – Avivamento Bíblico. O acesso é pela estrada de Januária, logo depois de Lavajinha. Ali, todos trabalham e vivem do campo e para o campo, numa região de penhascos, que difere completamente da topografia do Norte de Minas. São os “alcantis”, eles sabem, mas lamentam que estejam numa situação de grande ruína, depois que o banco deu de financiar suas atividades, estimulou uma fabriqueta de laticínios e impôs a compra de umas “vacas pretas”. As vacas morreram, ninguém deu conta de pagar os juros ao banco e todos estão muito endividados.
Lavajinha e Furadinho levam ao Morro Agudo, onde nasceu Lourdes, a primeira mulher de Lula. Quando dali saiu a caravana de retirantes, em 1952, o lugar era alegre, com muitas famílias, muitas festas e “domingadas”. Os bailes eram animados com uma vitrola manual e o primeiro trator, que destocou o terreno, causou furor e espanto.
Hoje, o morro agudo – uma alta montanha arredondada, que contrasta com os alcantis e batiza o local – é o única coisa que permanece imponente. O resto é esgotamento e desolação. Todos se mudaram a partir daquela época e as extensas pastagens resultam agora num campo de espinhos- agulha.
Cinqüenta anos depois, este é o cenário que dona Hermínia e Lambari foram encontrar no retorno à casa velha, onde o pai dela, “seu” Jacinto, deu de criar uma cobra gibóia pela telhado, incumbida de comer as cobras venenosas, bem menores, mesmo a custo de cair dos caibros e assustar crianças, como a pequena Lourdes e o irmão Lambari.
Ao socavão esconso, que dá para o povoado de Barreiras, só se chega a pé. Nem o cavalo vai lá, porque o terreno é acidentado, tem pedras escorregadias e, depois delas, tem penhas e nas penhas precipícios.
Mesmo dependente da bengala, a sogra de Lula aceitou ir, guiando o filho Lambari, o maior amigo de juventude do presidente. Aquele que tinha com ele sociedade nos cigarros, partilhados também por “Maria Baixinha”, a irmã de Lula, dois anos mais velha do que o presidente, e dona dessas declarações:
“Eu e Lula sempre nos demos muito bem. Por exemplo, mais tarde, quando o Lula chegava de fogo em casa, era eu que dava banho nele. Quando ele namorava a Lourdes, ela saía com o irmão dela. Esse cara é o máximo, o Lambari, ele sabe coisa que vai deixar qualquer um impressionado. Eles passaram a mocidade toda juntos. Casaram e continuaram amigos. Nem irmãos eram tão amigos. Era uma amizade assim, a coisa mais bonita que podia existir”.
O encontro de Hermínia com os irmãos, antes de pegar a tosca estrada que permite chegar mais perto do Morro Agudo, é emocionante. Só não permitem lágrimas grossas porque o lugar não tem este costume. Mas, choram sim.
Por 2,3 kms, em péssima estrada, nos aproximamos de carro do Morro Agudo, onde se pode ir “pelado” a qualquer tempo, avisa Mané Codorna, porque aqui não passa mesmo ninguém. Fomos.
Na procissão da saudade, o menino Adilson, de 6 anos, descalço, evoca o Lambari daqueles dias. A pé, entre espinhos, poeira, matas, córregos secos, subidas, descidas, colchetes, cancelas, mata-burros, a distância é de aproximadamente 2 quilômetros , ou l hora. Normal para quem tem costume. Normal também para dona Hermínia, sua bengala e os 73 anos.
Na mesma hora em que Lula era recebido pelo presidente dos Estados Unidos, o primeiro amigo da juventude, Lambari, e sua mãe, a poucos metros já podiam ver o que sobrou da casa natal de Lourdes, deixada ali.
Apenas rijos esteios de aroeira, telhas silenciosas e adobes vermelhos pelo chão, que não se renderam à chuva, talvez porque nem chova mais ali, onde existia um riacho que descia da serra, esculpia na pedra, acordava os homens e adormecia as crianças.
Dona Hermínia chorou por dentro. Viu “um filme passar pela cabeça”, enquanto o menino Lambari ressurgiu dos seus 56 anos perguntando pela plantação de caxi, pela mangueira, pela vaca que o “pegou” onde costumava comer terra. “Parece que foi noutra vida”, resumiu a sogra de Lula, enquanto o irmão Henrique perguntava pelos passarinhos, que ninguém via, e Mané Codorna justificava, com acerto: “até os bichos gostam de movimento. Cantar pra quem?”
Na volta da bocaina, sentindo mais o caminho que a mãe de 73 anos, Lambari tomou a frente e repetiu o amigo Lula nos dias finais da campanha que o elegeu presidente da República:
_ Eu, que sou mais bonitinho, vou tirando retrato na frente. Você, Lambari, como é mais feio, vai dando autógrafo.
No miserável povoado de Lavajinha, que recolhe os votos da redondeza, historicamente um reduto governista, a vitória de Lula não foi menos expressiva do que em Montes Claros, onde teve 8 de cada 10 votos. Talvez até por causa do financiamento das “vacas pretas”. A história de que ele é genro de dona Hermínia também é sabida, mas não tanto que justifique a vitória de 121 votos contra 42 dados a José Serra, 2 brancos e 8 nulos, num total de 173 apurados.
Na posse
Em 1980, aos 64 anos, quando morria de câncer – doença que devasta a família materna de Lula -, dona Lindu soube no hospital que o filho estava preso, notícia que lhe vinha sendo poupada. Ela fez a observação: “Meu Deus, como que ele vai fazer tudo isso? Deve ter um anjo da guarda perto dele”. Dias depois, conversando com a nora, esposa de Zé Cuia, dona Lindu pediu um copo dágua, tomou, virou do lado e morreu.
Como ela, dona Hermínia admira profundamente o genro. A convite especial de Lula, dona Hermínia e Lambari, assistiram o presidente receber a faixa no parlatório, em Brasília. Os dois estavam dentro do Palácio do Planalto, ao lado dos irmãos de Lula, no núcleo mais íntimo da família, de pernambucanos e mineiros. E viram, e aplaudiram, o gesto solene em que o amigo retirante assumia o mais alto posto da República.
_ Dona Hermínia, naquele momento, a senhora pensou que sua filha poderia estar alí, como primeira dama do país?
_ Pensei, sim. E ela estava. Estava representada na honestidade de Lula e na lealdade de Marisa a Lula.
Pedidos
A casa de Mané Codorna, o tio da primeira mulher do presidente, e seus poucos móveis, quase nenhum, apesar de respirar mansuetude e quietação, bem pode servir a Lula quando desejar rever os momentos de pobreza material mais intensa que teve em São Paulo , de casa em casa, de bairro em bairro.
Se quiser, se algum dia for lá, onde nunca foi nenhum prefeito de Montes Claros nos 171 anos do município, o presidente pode também ouvir das crianças histórias muito parecidas com a que ele viveu na meninice.
A pedido do HOJE EM DIA, as crianças de 6 a 14 anos escreveram cartas ao presidente fazendo referências à conterrânea que foi sua primeira esposa. E nelas, o lamento é constante. Todos se queixam, e esperam ajuda, para que as escolas as recebam melhor, e não assistam aulas sentadas no chão. Também, pedem merenda melhor e ônibus decentes, que não as obrigue a andar, às vezes 4, 5 horas, toda madrugada para chegarem ao local das aulas.
E se ouvir os adultos conterrâneos de sua Maria de Lourdes da Silva, o presidente pode até determinar que a região ganhe uma grande maternidade, que impeça que as mulheres dali, como a sua Lourdes, morram na hora de ter filhos. Ali, morrer no parto é uma constante, até hoje. Em Montes Claros , pessoas morrem na porta dos hospitais, com freqüência.
Como morreu Lourdes, em São Paulo , em l971, morreu a avó de Lourdes, mãe de Hermínia. Morreu a primeira mulher de Mané Codorna e morreu a mãe de Maria Nazaré de Freitas, que na igreja do Avivamento Bíblico narrou para todos a história do 5º parto de sua mãe, Maria Ribeiro da Silva, outra Silva, que morreu no parto triplo em que apenas ela sobreviveu.
E todos pedirão, por fim, em comovido silêncio, que o presidente dê a esta maternidade regional um nome que o acompanha e vela por ele – Maria de Lourdes da Silva, retirante de 22 anos, morta em 7 de junho de 1971.
* O jornalista Paulo Narciso, 52 anos, começou aos 15, no “O Jornal”, de Montes Claros. Aos 20, era repórter de Polícia do “Estado de Minas”, onde atuaria como editor e repórter especial. Aos 21, obteve menção honrosa no Prêmio Esso. Em 1975, ganhou o Prêmio Esso, com a reportagem “A Esperança Muito Passageira do Trem do Sertão”.
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