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A quem pertence a Sala Minas Gerais? Ela é minha, é nossa, é do povo mineiro, que bancou a sua construção e manutenção até hoje.

16 de abril de 2024, 12h32 | Por Letícia Horsth

by Letícia Horsth

Em tempos de pós-verdade e fake News, nos acostumamos a ver muitos exemplos de distorção da realidade, principalmente nas redes sociais. E foi nelas que circulou na semana passada uma foto que trazia uma faixa com os seguintes dizeres: “Zema, a Sala Minas Gerais é nossa”. Ela era levantada por manifestantes em frente ao Centro Cultural Presidente Itamar Franco, em Belo Horizonte. Lá funciona a citada Sala Minas Gerais e também a sede da Empresa Mineira de Comunicação, que une a Rádio Inconfidência e Rede Minas. A frase, tão afirmativa, despertou-me uma interrogação: Nossa, mas de quem?

A manifestação citada aconteceu como repúdio a um acordo entre a Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais (Codemig), uma empresa pública, e o SESI Minas, uma entidade paraestatal ou serviço social autônomo, celebrando uma Cooperação Técnica para Gestão Compartilhada da Sala Minas Gerais. O objetivo é dinamizar a utilização do espaço e ampliar o acesso popular a um equipamento público que consumiu mais de R$ 200 milhões quando foi construído, há mais de uma década.

Desde sua fundação, o espaço é gerido e usado exclusivamente pelo Instituto Cultural Filarmônica, uma entidade privada, criada durante o governo de Antonio Anastasia. Na época, o governador quis privatizar a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, forçando a demissão de funcionários públicos, que deveriam migrar para o Instituto particular presidido (até hoje) por seu amigo Diomar Silveira.

Numa luta heróica, a maioria dos músicos da Orquestra Sinfônica conseguiu resistir e garantiu na Justiça o direito de continuar suas carreiras conquistadas por concurso público. Mesmo assim, o governador, junto com a então secretária de Cultura, Eleonora Santa Rosa, manteve o plano e criaram a Orquestra Filarmônica. O próprio nome foi também fruto de uma decisão judicial, pois eles queriam usar o mesmo nome da Orquestra pública, a Sinfônica.

O objetivo de usar o nome “Sinfônica” era mais que um capricho. A diferença entre as orquestras está na origem do financiamento do grupo. Pela tradição, as orquestras sinfônicas são organizações mantidas pelo governo. Já as orquestras filarmônicas tradicionalmente são particulares, mantidas e financiadas por membros da sociedade. O prefixo “filo” (do grego philos) significa “amigo de”.

Desde lá, Minas Gerais passou a contar com duas grandes orquestras, além de outras existentes. Algo positivo, sem dúvida. Acontece que a Filarmônica virou uma anomalia, um corpo estranho e nocivo à cultura mineira. Mesmo sendo privada, ela consome 62% de todo o orçamento público destinado a ações culturais. Além disso, o ICF se arvorou do uso da Sala Minas Gerais, um espaço público, construído com o dinheiro da Codemig.

Em 2015, o então secretário de Cultura, Ângelo Oswaldo, quis enfrentar essa aberração, tentando negociar a redução de repasses públicos para a Filarmônica, já que ela já estava recebendo outros investimentos via Lei de Incentivo à Cultura. Infelizmente, o lobby daquela orquestra foi mais forte, e o uma força superior no governo interveio em favor da instituição privada. Na época (9 anos atrás), o secretário denunciava que a Filarmônica já tinha consumido quase R$ 1 bilhão de dinheiro público. Assim, até hoje temos uma entidade privada que tem gastos exorbitantes bancados pelo dinheiro público, em contraponto a todo o setor cultural do estado, que vive na miséria.

Volto à pergunta inicial, quando a faixa diz “Sala Minas Gerais é nossa”, refere-se a quem? Da Filarmônica é que não é. Ela é minha, é nossa, é do povo mineiro, que bancou a sua construção e manutenção até hoje. Portanto, a Sala deve ser utilizada por outros atores culturais, como outras orquestras e eventos culturais. Seu uso tem que ser democratizado, como propõe o acordo celebrado entre a Codemig e o Sesi. Alguns argumentam que a gestão poderia passar para a Fundação Clóvis Salgado, uma entidade pública. Acontece que atualmente a Fundação não está conseguindo manter nem o Palácio das Artes e seus corpos artísticos, como a Orquestra Sinfônica.

Desde a criação da Filarmônica, a Sinfônica, orquestra pública, vive em estado de penúria. Sem financiamento do Estado, tem que recorrer a leis de incentivo para garantir seu funcionamento. E Minas Gerais criou uma situação sui generis: A orquestra pública tem que procurar dinheiro privado para se manter e a orquestra privada recebe centenas de milhões de dinheiro público. Infelizmente, essa anomalia ainda não será enfrentada. O acordo Codemig/Sesi garante apenas que o uso da Sala Minas Gerais não será mais exclusivo pela Filarmônica, mas nada ainda foi feito para interromper a irrigação de dinheiro público na milionária entidade privada. Ainda não é o ideal, mas já foi um avanço.

O espaço público Sala Minas Gerais deve abrigar também concertos da Orquestra Sinfônica, que cumpre enorme atuação de interesse público. Basta acompanhar suas apresentações no Palácio das Artes ou no Parque Municipal, que atraem milhares de pessoas, principalmente de classes populares. Seguidores da Sinfônica também devem frequentar a Sala Minas Gerais, que hoje é privilégio dos ricaços da cidade.

Na primeira apresentação da Filarmônica após ser instalada a polêmica do acordo, o maestro Fábio Mechetti leu um discurso em que dizia que uma “sede não se cede”. Assim, ele demonstra que não se apropria apenas do nosso dinheiro, mas se sente dono também do nosso patrimônio. Mechetti está no direito de defender seus privilégios e de seus pares, mas o inusitado é ver militantes de esquerda e artistas irem pra rua para proteger seus algozes, aqueles que sugaram milhões de reais que deveriam ter sido destinados à cultura popular.

Essa união, com ares de Síndrome de Estocolmo, é das coisas mais estranhas que assisti nos últimos tempos. Ela só foi possível graças a uma inversão completa da realidade, através de uma falsa narrativa inventada pelo Instituto que a dirige. Neste realismo fantástico, seria apropriado que a próxima apresentação da Filarmônica seja de uma ópera bufa, com o público formado por aqueles que estão sendo ludibriados e usados pelos privilegiados que gastam milhões e milhões para alimentar a sanha da burguesia mineira.

Com informações do OTempo.
Foto: filarmonica/Reprodução.

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