A morte do ex-padre Michel Marie Le Ven, nesses últimos dias, me fez lembrar como eu consegui contato com ele e acabei desvendando um mistério.
Corria o ano de 1968 quando ficamos sabendo que naqueles dias foram presos um diácono brasileiro e três padres estrangeiros que exerciam suas funções paroquiais no Horto.
E por vários dias ficaram presos em local incerto e não sabido. Na arquidiocese de Belo Horizonte, nenhuma notícia. Do Exército, autor das prisões, muito menos.
A Igreja mandou o seu Núncio Apostólico, uma espécie de embaixador, a Belo Horizonte, em busca de notícias. O arcebispo, dom João Resende Costa, também não tinha nenhuma informação. Seu bispo auxiliar – depois cardeal – dom Serafim, também não. E a imprensa correndo de um lado para o outro sem ter noticia dos três padres estrangeiros e o diácono brasileiro que forma presos na paróquia do Horto.
Um certo dia, dos tantos que se passaram sem noticia dos presos, uma fonte me tocou que eles poderiam estar na 4ª Companhia de Comunicações do Exército, um local discreto, como convinha, na região da Pampulha, mais precisamente atrás do Colégio Militar.
E fui para lá na indefectível kombi azul e branco do Estado de Minas, onde eu trabalhava cobrindo o gabinete do Secretário de Segurança Pública, Joaquim Gonçalves, o DOPS, a Polícia Federal e a Delegacia Geral do Estado, ou seja, o centro de repressão política no Estado.
Tive um colega que dizia que repórter precisa ter informação e sorte, às vezes mais sorte do que informação, especialmente naquela época do governo militar, pois a informação você quase nunca podia usar e a sorte por vezes era suficiente para tirar de enrascadas o repórter bem informado. Mas fui com seu João, o motorista, e o fotógrafo Clodovil para a 4ª Cia de Comunicações.
E neste ponto entra o fator sorte porque logo ao chegar na guarita do Colégio Militar fui barrado por um soldado que me perguntava para onde iria. Mas ao me reconhecer, o soldado, um velho amigo de Montes Claros, logo entendeu qual era a minha missão e me recomendou ir, não à 4ª Cia de Comunicações, mas ao Colégio Militar, “por que é lá que estão o que vocês procuram”.
E fomos sem que ninguém nos impedisse. Subi ao quarto andar, como me recomendara o soldado Roberto – depois advogado em Januária, onde faleceu – batemos na primeira porta que não fosse aquela do coronel Facó, comandante do Colégio, identificada por uma plaqueta, e demos de cara com os quatro presos, a saber Michel Le Ven, François Xavier Berthou, Hervé Croguenec e o diácono José Geraldo da Cruz, que foram presos às 6h15 minutos, no caso de Le Ven, os outros às 18h, no dia 28 de novembro de 1968, uma sexta-feira.
No dia 02 de fevereiro saiu a preventiva deles e no dia 03 os fiéis fecharam a igreja no Horto em sinal de protesto pela prisão dos padres e do diácono. E dom Serafim, bispo auxiliar da Arquidiocese, manda ler uma homilia denunciando a prisão.
Naquele dia em que encontrei os padres e o diácono, só tive tempo de lhes fazer duas perguntas. Se estavam bem, se haviam sofrido alguma tortura. Disseram que não e fui empurrado delicadamente pelo fotógrafo Clodovil que queria o registro das fotos e assim que as fez me passou o filme, providencialmente, porque os passos nas escadas denunciavam que o coronel Facó chegava com sua tropa.
Foi num lampejo que Clodovil trocou o filme da máquina e me mandou guardar no bolso porque a primeira coisa que um dos comandados de Facó fez foi tomar a máquina e “velar” o filme, isto é, inutilizá-lo, pensando tratar-se do filme com as fotos dos padres e do diácono presos no Colégio Militar. Foi ludibriado pela sagacidade do fotógrafo.
Com isso, finalmente, desvendou-se o segredo de onde estavam os padres, ainda que não os livrasse da acusação de “subversivos”, embora o episódio tenha desencadeado a mais dura resposta que a Igreja tenha oferecido ao Estado brasileiro, com o fechamento de igrejas por protesto e uma reação em todo país, fazendo explodir a primeira grave crise entre a Igreja e o Estado, das tantas que vieram depois, até o fim da ditadura em 1985.
Depois de tudo, Michel Le Ven, morto nestes últimos dias, tornou-se professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais.
Aposentou-se há alguns anos., deixando um legado cultuado por colegas e alunos da academia, sem jamais entregar-se aos poderosos ou ao oportunismo enganoso dos que pretendem apenas sobreviver, dando uma lição permanente de sublevação e inconformismo.
De Michel Le Ven pode-se dizer que cumpriu bem o seu papel de professor.
Foto: Acervo Imagens antigas ( Praça Vaz de Melo – década de 60/ hoje está o complexo Viário da Lagoinha).