O naufrágio de civilizações é um tema que intriga historiadores e cientistas sociais. A pergunta que nos assombra é sempre: por que sociedades que avançaram no desenvolvimento econômico e social optam por escolhas que desconstroem as condições que permitiam a prosperidade e o bem-estar?
A maioria no Brasil já parece ter se dado conta de que vivemos em um naufrágio. Os desacertos e retrocessos são evidentes, basta que se tenha objetividade mínima em observar o país no seu enfrentamento à pandemia do COVID-19, na condução da política econômica, nas políticas ambientais, de proteção social e de relações internacionais. Tudo em nós é naufrágio.
Os destroços estão em todos os lugares. A reputação de um país inspirador de políticas públicas está partida. A decadência de programas outrora excelentes, como o de imunização, se aprofunda. O governo federal não apresenta nenhum rumo. Governadores, prefeitos, juízes e parlamentares procuram de forma desordenada apresentar soluções que corrijam a nossa rota de equívocos. O piloto sumiu e, pior, todos nós tememos que ele queira, de súbito, resolver voltar e conduzir o país.
Ganhou destaque na imprensa a notícia da intenção do governo federal em alterar a forma de registro no Cadastro Único. Dada à centralidade deste cadastro na concessão e gestão de mais de 20 programas federais, como Bolsa Família e Minha Casa Minha Vida, a possibilidade de mudança gerou compreensível apreensão nos gestores das políticas de proteção social no Brasil. O CadÚnico, como o Cadastro Único é conhecido, contém o registro ativo de mais de 70 milhões de brasileiras e brasileiros, que em sua maioria possui renda inferior a meio salário mínimo. O Cadastro está também no centro de um sistema de proteção social, onde mais de 600 mil profissionais buscam identificar as várias necessidades das pessoas que procuram as políticas de proteção social para superarem as vulnerabilidades a que estão expostas.
Embora a pobreza seja a vulnerabilidade que as atinge mais amplamente, existem outras tantas: as violências de diversos tipos (física, sexual, moral, etc.), o trabalho infantil, o analfabetismo, déficits no acesso a água potável e energia elétrica. Todas essas demandas por direitos previstos na constituição e em outros instrumentos legais dependem do registro no CadÚnico e da interação de quem pleiteia com o agente público que interpreta, orienta ou atende a necessidade de um indivíduo ou uma família. O CadÚnico é muito importante, mas é na interação entre cidadão e o estado que ocorre a possibilidade de resolução ou mitigação dos problemas e aflições de muitas pessoas vulneráveis neste país.
A proposta do governo é simplesmente remover essa interação entre pessoas e a participação dos municípios, transformando o processo de inscrição em uma função de um aplicativo de celular. Se na pandemia este expediente foi usado para a inscrição de pessoas não registradas no CadÚnico que buscavam o auxílio emergencial, doravante essa passaria a ser a regra.
No novo modelo, o Brasil simplesmente renunciaria à respeitadíssima engenharia social construída por décadas por uma solução, que somente agora começou a ser auditada e que cumpriu apenas uma pequena parte do que o sistema de proteção social nacional entrega à população.
Para quem, como nós, se dedica à luta contra a pobreza há mais de 50 anos, é óbvio que os proponentes pouco sabem da dinâmica da pobreza, quase nada sabem do Sistema Único da Assistência Social (SUAS) e estão alheios às melhores práticas desenvolvidas no mundo de combate à pobreza, para as quais o Programa Bolsa Família e o próprio SUAS são exemplos.
Para além da narrativa de modernização, há sempre poderosos interesses econômicos movendo as engrenagens. Estas, por sua vez, são indiferentes às várias barreiras de acesso que muitas pessoas possuem em relação aos programas de proteção social. Estas barreiras, por sua vez, não serão superadas sem o decidido apoio dos profissionais e das administrações municipais que são a verdadeira alma da proteção social no Brasil.
A transformação proposta ao CadÚnico, caso prospere, exporá o país a mais um naufrágio. Para além das narrativas vazias pela economicidade da gestão pública restarão muitos excluídos, muitos programas sucateados, muitos direitos vilipendiados. Escombros de um vigoroso sistema de proteção social que um dia foi construído por todos nós.
Patrus Ananias exerce o terceiro mandato como deputado federal, é secretário-geral da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Soberania Nacional, foi ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, no governo Lula, e do Desenvolvimento Agrário, no governo Dilma Rousseff, prefeito e vereador de Belo Horizonte.
Rômulo Paes de Sousa é epidemiologista e especialista em avaliação de políticas públicas nas áreas de: saúde e exclusão social, saúde urbana, saúde ambiental, avaliação do impacto de políticas sociais e sistemas de informação geográficos. Foi diretor do Centro Mundial do PNUD para o Desenvolvimento Sustentável (2013-2017), secretário de Avaliação e Gestão da Informação (2004 a 2007) e secretário-executivo do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2009 a 2012).
Por Patrus Ananias e Rômulo Paes de Souza
Foto: Elza Fiúza/Agência Brasil
1 comentário
Super informação. Gostei muito.