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Carta de demissão do diretor da ONU para quem ainda não leu

7 de novembro de 2023, 11h11 | Por Redação ★ Blog do Lindenberg

by Redação ★ Blog do Lindenberg

28 de outubro de 2023

Prezado Alto Comissário,

Este será meu último comunicado oficial ao senhor como Diretor do Escritório de Nova York do Alto Comissariado para os Direitos Humanos.

Escrevo em um momento de grande angústia para o mundo, inclusive para muitos de nossos colegas. Novamente, testemunhamos um genocídio em curso diante de nossos olhos, e a Organização a que servimos parece impotente para impedi-lo. Como alguém que investiga os direitos humanos na Palestina desde a década de 1980, viveu em Gaza como consultor de direitos humanos para a ONU na década de 1990 e realizou várias missões de direitos humanos no país antes e depois disso, essa é uma questão extremamente pessoal para mim.

Também trabalhei nesses corredores durante os genocídios sofridos pelos tutsis, muçulmanos bósnios, yazidis e rohingyas. Em cada um desses casos, quando a poeira baixou sobre os horrores perpetrados contra populações civis indefesas, ficou dolorosamente nítido que havíamos falhado em nosso dever de atender aos imperativos de prevenção de atrocidades em massa, de proteção dos vulneráveis e de responsabilização dos perpetradores. Assim tem sido com as sucessivas ondas de assassinato e perseguição contra os palestinos durante toda a existência da ONU.

Alto Comissário, estamos falhando novamente.

Como advogado de direitos humanos com mais de três décadas de experiência na área, sei bem que o conceito de genocídio tem sido vítima de abusos políticos com recorrência. Mas o atual massacre em massa do povo palestino, com raízes em uma ideologia colonial etnonacionalista, em continuação a décadas de perseguição e expurgo sistemáticos, com base inteiramente em sua condição de árabes, e com declarações explícitas de intenção por parte dos líderes do governo e das forças armadas israelenses, não deixa espaço para dúvidas ou debates. Em Gaza, casas, escolas, igrejas, mesquitas e instituições médicas de civis são atacadas gratuitamente, massacrando milhares de civis. Na Cisjordânia, incluindo a Jerusalém ocupada, as casas são confiscadas e redistribuídas com base inteiramente na raça, e os pogroms realizados por violentos colonos são acompanhados por unidades militares israelenses. Em todo o país, reina o Apartheid.

Esse é um caso exemplar de genocídio. O projeto colonial europeu etnonacionalista de ocupação da Palestina entrou em sua fase final, rumo à destruição acelerada dos últimos remanescentes da vida indígena na Palestina. Além disso, os governos dos Estados Unidos, do Reino Unido e de grande parte da Europa são totalmente cúmplices dessa terrível violação. Esses governos não só estão se recusando a cumprir suas obrigações de “garantir o respeito” às Convenções de Genebra, como também estão, na verdade, ativamente fornecendo armas aos assaltos, oferecendo apoio econômico e de inteligência, bem como dando cobertura política e diplomática para as atrocidades de Israel.

Conjuntamente, a mídia corporativa ocidental, cada vez mais refém e aliada aos Estados, está violando abertamente o Artigo 20 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, desumanizando continuamente os palestinos para facilitar o genocídio e transmitindo propaganda de guerra e promoção do ódio nacional, racial ou religioso que constitui incitação à discriminação, hostilidade e violência. As empresas de redes sociais sediadas nos EUA estão suprimindo as vozes dos defensores dos direitos humanos e amplificando a propaganda pró-Israel. Os trolls da internet e ONGs patrocinadas por governos do lobby de Israel perseguem e difamam os defensores dos direitos humanos, e também as universidades e empregadores ocidentais colaboram com os agressores para punir aqueles que ousam se manifestar contra as atrocidades. Na esteira desse genocídio, é preciso que ocorra a prestação de contas desses agentes, assim como ocorreu a da rádio Milles Collines em Ruanda.

Nessas circunstâncias, as exigências em nossa organização por ações eficazes e baseadas em princípios são maiores do que nunca. Mas não superamos o desafio. O Conselho de Segurança, com poder de garantia de proteção, foi novamente bloqueado pela intransigência dos EUA, o Secretário-Geral está sendo atacado devido até suas declarações mais brandas e nossos mecanismos de direitos humanos estão sob incessante ataque calunioso por uma organizada rede de impunidade na internet.

Décadas de distração com as promessas ilusórias e, em grande parte, falsas [dos Acordos de Paz] de Oslo desviaram a Organização de seu dever fundamental de defender o direito internacional, os direitos humanos internacionais e a própria Carta. O mantra da “solução de dois Estados” tornou-se uma piada aberta nos corredores da ONU, tanto por sua total impossibilidade de fato, quanto por sua total incapacidade de levar em conta os direitos humanos inalienáveis do povo palestino. O chamado “Quarteto” tornou-se nada mais do que uma cortina de fumaça para a inação e para a subserviência a um status quo brutal. A deferência (delineada pelos EUA) aos “acordos entre as partes envolvidas” (no lugar do direito internacional) sempre foi uma manobra transparente, criada para reforçar o poder de Israel sobre os direitos dos palestinos ocupados e despossuídos.

Alto Comissário, vim a esta Organização na década de 1980, porque encontrei nela uma instituição baseada em princípios e normas que estava totalmente alinhada aos direitos humanos, inclusive em casos em que os poderosos EUA, Reino Unido e Europa não estavam do nosso lado. Enquanto meu próprio governo, suas instituições subordinadas e grande parte da mídia dos EUA ainda apoiavam ou justificavam o apartheid sul-africano, a opressão israelense e os esquadrões da morte da América Central, a ONU defendia os povos oprimidos dessas terras. Tínhamos o direito internacional do nosso lado. Tínhamos os direitos humanos do nosso lado. Tínhamos os princípios do nosso lado. Nossa autoridade estava arraigada em nossa integridade. Mas isso é passado.

Nas últimas décadas, setores importantes da ONU se renderam ao poder dos EUA e ao medo do lobby de Israel, abandonando esses princípios e se afastando do próprio direito internacional. Perdemos muito com esse abandono, inclusive nossa própria credibilidade global. Mas o povo palestino sofreu as maiores perdas como resultado de nossos fracassos. É uma ironia histórica impressionante que a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) tenha sido adotada no mesmo ano em que a Nakba foi perpetrada contra o povo palestino. Ao comemorarmos o 75º aniversário da DUDH, faríamos bem em abandonar o velho clichê de que a DUDH nasceu das atrocidades que a precederam e admitir que ela nasceu junto com um dos genocídios mais brutais do século XX, o da destruição da Palestina. De certa forma, os autores da Declaração estavam prometendo direitos humanos a todos, exceto ao povo palestino. Devemos lembrar também que a própria ONU carrega o pecado original de ajudar a facilitar a desapropriação do povo palestino ao ratificar o projeto de colonização europeia que tomou as terras palestinas e as entregou aos colonizadores. Há muitas injustiças que exigem nossa reparação.

Mas o caminho para a reparação é evidente. Temos muito a aprender com a postura valorosa adotada em cidades de todo o mundo nos últimos dias, quando massas de pessoas se levantaram contra o genocídio, mesmo correndo o risco de serem espancadas e presas. Os palestinos e seus aliados, os defensores dos direitos humanos de toda ordem, as organizações cristãs e muçulmanas e as vozes de judeus progressistas que dizem “não em nosso nome” estão mostrando o caminho. Tudo o que temos de fazer é segui-los.

Ontem, a apenas alguns quarteirões daqui, a Grand Central Station de Nova York foi completamente tomada por milhares de judeus defensores dos direitos humanos que se solidarizaram com o povo palestino e exigiram o fim da tirania israelense (muitos correndo o risco de serem presos). Ao fazer isso, eles eliminaram em um instante o argumento da hasbara, propaganda oficial israelense, (e o velho tropo antissemita) de que Israel de alguma forma representa o povo judeu. Não representa. E, como tal, Israel é o único responsável por seus crimes. Sobre esse ponto, vale a pena repetir, apesar das difamações do lobby de Israel em contrário, que a crítica às violações dos direitos humanos por Israel não é antissemita, assim como a crítica às violações da Arábia Saudita não é islamofóbica, a crítica às violações de Mianmar não é antibudista ou a crítica às violações da Índia não é anti-hindu. Quando eles tentam nos silenciar com difamações, devemos erguer nossa voz, não baixá-la. Espero que concorde, Alto Comissário, que é disso que se trata falar a verdade ao poder.

Mas também encontro esperança em setores da ONU que se recusaram a comprometer os princípios de direitos humanos da Organização, apesar das enormes pressões nesse sentido. Nossos relatores especiais independentes, comissões de inquérito e especialistas de órgãos de tratados, juntamente com a maioria de nossa equipe, continuaram a defender os direitos humanos do povo palestino, mesmo quando outros setores da ONU (até mesmo nos níveis mais altos) se curvaram vergonhosamente ao poder. Como guardião das normas e padrões de direitos humanos, o OHCHR tem um dever especial de defender esses padrões. Acredito que nosso trabalho é fazer com que nossa voz seja ouvida, desde o Secretário-Geral até o mais novo recruta da ONU, e horizontalmente em todo o sistema da ONU, insistindo que os direitos humanos do povo palestino não estão sujeitos a debate, negociação ou compromisso em nenhum lugar sob a bandeira azul.

Como seria, então, uma posição baseada nas normas da ONU? Em função de que trabalharíamos se fôssemos fiéis às nossas admoestações retóricas sobre direitos humanos e igualdade para todos, responsabilidade para os perpetradores, reparação para as vítimas, proteção dos vulneráveis e capacitação para os detentores de direitos, tudo sob o estado de direito? A resposta, acredito, é simples – se tivermos a clareza de enxergar além das cortinas de fumaça propagandísticas que distorcem a visão de justiça que juramos ter, a coragem de abandonar o medo e a deferência aos Estados poderosos e a vontade de realmente assumir a bandeira dos direitos humanos e da paz. Sem dúvida, esse é um projeto de longo prazo e uma escalada íngreme. Mas precisamos começar agora ou nos renderemos a um horror indescritível. Vejo dez pontos essenciais:

Ação legítima: Em primeiro lugar, nós, na ONU, devemos abandonar o fracassado (e amplamente dissimulado) paradigma de Oslo, sua ilusória solução de dois Estados, seu impotente e cúmplice Quarteto e sua subjugação do direito internacional aos ditames de uma suposta conveniência política. Nossas posições devem se basear, sem desculpas, nos direitos humanos internacionais e no direito internacional.

Clareza de visão: Devemos parar de fingir que se trata apenas de um conflito por terra ou religião entre duas partes beligerantes e admitir a realidade da situação em que um Estado desproporcionalmente poderoso está colonizando, perseguindo e desapropriando uma população indígena com base em sua etnia.

Um Estado baseado nos direitos humanos: Devemos apoiar o estabelecimento de um Estado único, democrático e secular em toda a Palestina histórica, com direitos iguais para cristãos, muçulmanos e judeus e, portanto, o desmantelamento do projeto racista e colonial dos colonos e o fim do apartheid em todo o território.

Luta contra o apartheid: Devemos redirecionar todos os esforços e recursos da ONU para a luta contra o apartheid, assim como fizemos com a África do Sul nas décadas de 1970-80 e início dos anos 1990.

Devolução e compensação: Devemos reafirmar e insistir no direito de retorno e na indenização total para todos os palestinos e suas famílias que vivem atualmente nos territórios ocupados, no Líbano, na Jordânia, na Síria e na diáspora em todo o mundo.

Verdade e justiça: Devemos exigir um processo de justiça transicional, fazendo pleno uso de décadas de investigações, inquéritos e relatórios acumulados da ONU, para documentar a verdade e garantir a responsabilização de todos os perpetradores, a reparação de todas as vítimas e os remédios para injustiças documentadas.

Proteção: Devemos pressionar pelo envio de uma força de proteção da ONU com bons recursos e com um mandato forte para proteger os civis do rio ao mar.

Desarmamento: Devemos defender a remoção e a destruição dos enormes estoques de armas nucleares, químicas e biológicas de Israel, para que o conflito não leve à destruição total da região e, possivelmente, de outros lugares.

Mediação: Devemos reconhecer que os EUA e outras potências ocidentais não são, de fato, mediadores confiáveis, mas sim partes reais do conflito e são cúmplices de Israel na violação dos direitos dos palestinos, e devemos envolvê-los como tal.

Solidariedade: Devemos abrir nossas portas (e as portas da Secretaria Geral) de par em par para as legiões de defensores dos direitos humanos palestinos, israelenses, judeus, muçulmanos e cristãos que estão se solidarizando com o povo da Palestina e seus direitos humanos, e interromper o fluxo irrestrito de lobistas de Israel para os escritórios dos líderes da ONU, onde eles defendem a continuação da guerra, da perseguição, do apartheid e da impunidade, e difamam nossos defensores dos direitos humanos por sua defesa de princípios dos direitos palestinos.

Isso levará anos para ser alcançado, e as potências ocidentais nos combaterão a cada passo do caminho, portanto, devemos ser firmes. No curto prazo, devemos trabalhar por um cessar-fogo imediato e pelo fim do cerco de longa data a Gaza, nos posicionar contra a limpeza étnica em Gaza, Jerusalém e Cisjordânia (e em outros lugares), documentar o ataque genocida em Gaza, ajudar a levar ajuda humanitária e reconstrução em massa aos palestinos, cuidar de nossos colegas traumatizados e de suas famílias e lutar com todas as forças por uma abordagem baseada em princípios nos escritórios políticos da ONU.

O fracasso da ONU na Palestina até o momento não é motivo para nos retirarmos. Em vez disso, ele deve nos dar a coragem de abandonar o paradigma fracassado do passado e adotar plenamente um curso mais baseado em princípios. Como OHCHR, vamos nos unir com ousadia e orgulho ao movimento antiapartheid que está crescendo em todo o mundo, acrescentando nosso logotipo à bandeira da igualdade e dos direitos humanos do povo palestino. O mundo está assistindo. Todos nós seremos responsáveis por nossa posição nesse momento crucial da história. Vamos nos posicionar ao lado da justiça.

Agradeço a você, Alto Comissário Volker, por ouvir este último apelo de meu escritório. Deixarei o Escritório em alguns dias pela última vez, após mais de três décadas de serviço. Mas não hesite em entrar em contato se eu puder ajudar no futuro.

Atenciosamente,
Craig Mokhiber

Foto: Reprodução/ACNUDH

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