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Igrejas evangélicas pentecostais tiveram boom de crescimento nos governos Lula e Dilma

9 de outubro de 2019, 08h04 | Por Carlos Lindenberg

by Carlos Lindenberg

Uma matéria de jornalismo de dados dos cientistas do Dadoscope, realizada com exclusividade para a Revista Fórum, revela que de janeiro de 1960 a dezembro de 2018 foram criadas mais de 150 mil igrejas evangélicas no Brasil, a grande maioria nos governos Lula e Dilma. E que o Rio de Janeiro, berço do bolsonarismo, tem números impressionantes não só na capital, mas também na Baixada Fluminense e interior.

Em uma fria manhã gaúcha de 12 de agosto de 2019, em um seminário promovido pelo PT de Porto Alegre, o economista, ex-diretor do IPEA e atual presidente da Fundação Perseu Abramo, Marcio Pochmann, afirmou:

“Hoje, cerca de 80 milhões de brasileiros frequentam semanalmente assembleias, as assembleias de Deus. Por volta de 2032, os evangélicos já serão maioria no Brasil. A lógica que rege esse fenômeno está mais ligada à subjetividade das pessoas do que à racionalidade. Essas igrejas são espaços de sociabilidade onde as pessoas podem falar sobre seus desejos e anseios. Lá elas encontram laços de fraternidade e solidariedade. Temos que ter a humildade de reconhecer a nossa defasagem de compreensão dessa realidade”.

O crescimento de adeptos das igrejas evangélicas não é uma novidade. Em 2016, os dados já indicavam que “três em cada dez (29%) brasileiros com 16 anos ou mais atualmente são evangélicos”. Não é difícil percebermos que, desde a década de 80, a paisagem das periferias passou a estar ligada à presença de igrejas evangélicas, com seus grandes cultos, conversões e testemunhos. Parte deles transmitidos ao vivo pela TV. Por fim, na última eleição de 2018, o voto religioso foi fundamental para a vitória do atual presidente Jair Bolsonaro.

Anos antes, em um texto póstumo do sociólogo Antônio Flávio Pierucci, falecido em 2012, percebemos com clareza profética um dos traços fundamentais destas igrejas onde a “lógica da esfera econômica colonizou a lógica da esfera religiosa”:

Lá na frente, os agentes da religião não passam de agentes econômicos, e as igrejas, de empresas. São, agora, também políticos, uma vez que tudo isso acarreta uma crescente necessidade, por parte das igrejas competitivas de se fazerem representar no Parlamento, às vezes com partido próprio, de onde podem defender seus interesses com a segurança jurídica e econômica costurada na lei que ajudam a criar ou a rejeitar.

Diante deste cenário, o cientista de dados se pergunta: seria possível termos uma dimensão do crescimento das igrejas evangélicas no Brasil? Existiriam dados abertos que poderiam nos dar suporte a pelo menos uma tentativa de resposta? Se sim, como acessar e analisar tais dados? Vejamos como podemos responder a estas perguntas.

Igrejas como empresas

Sabemos que as transformações na sociedade não são como pegadas na areia que se apagam aos movimentos das marés. Elas costumam deixar marcas duráveis e nítidas que podem permitir a recuperação do trajeto. A conversão religiosa, por exemplo, — elemento fundamental para o crescimento das igrejas — mais que uma escolha individual, está ligada a um conjunto de aspectos psicológicos, sociais e econômicos.

Além disso, para o crescimento do mercado da fé, é preciso que existam templos em cada esquina, com seus exércitos de pastores, obreiros e eventos. Esses templos, por sua vez, precisam de água, luz, banheiros, bancos de madeira, aparelhos de som e microfones. Os pastores precisam de ternos, os obreiros de fardas, lanches e ônibus para os convescotes religiosos etc. Em último caso, a própria Bíblia, a materialização da palavra de Deus, é uma mercadoria que precisa ser adquirida — ou seja, comprada — para ser devidamente experimentada. Parafraseando o velho Karl Marx, para fazermos “religião” é preciso beber, comer e vestir.

Qual é o ponto principal de tudo isto: se as igrejas se comportam cada vez mais como empresas e a “salvação” se torna uma mercadoria, talvez esta seja uma pista para entendermos o imenso crescimento destas instituições “econômico-religiosas”.

“Dados com bugalhos”

No Brasil, todas as empresas são obrigadas a se registrarem através do Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica ou mais conhecido pela sua sigla CNPJ. Nós utilizamos um script que baixa todos os dados de sócios das empresas brasileiras disponíveis no site da Receita Federal e exporta — como afirma ironicamente o seu criador — para um “formato legível por humanos”. (clique para ver os dados, clique para ver o script). De posse da imensa tabela com mais de 50 milhões de linhas com informações detalhadas de todas as empresas do Brasil os nossos problemas só estavam começando.

As empresas listadas estão organizadas pela “Classificação Nacional de Atividades Econômicas” ou CNAE. O CNAE para organizações religiosas é “94.91–0–00 — Atividades de organizações religiosas ou filosóficas”. Isto nos lembrou a afirmação do escritor argentino Jorge Luis Borges de que “sabidamente não há classificação do universo que não seja arbitrária e conjectural” (Borges JL. El idioma analítico de John Wilkins. In: Borges JL, editor. Obras completas 1923–1972. Buenos Aires: Emecé Editores; 1974, p.708). Imaginem a confusão que é reunir, em uma mesma classificação, institutos de psicanálise, terreiros de umbanda, agremiações filosóficas, paróquias católicas e, obviamente, igrejas evangélicas. O desafio que estava colocado era conseguirmos selecionar apenas as igrejas evangélicas listadas na base de dados sem levarmos meses — e talvez anos — fazendo isto manualmente.

Mergulhando nos dados com ajuda de um polvo

Se o leitor chegou até aqui ele deve estar pensando: esses cientistas de dados gostam de ser engraçadinhos! Infelizmente este não foi o caso. O título desta seção é praticamente literal. Para tentarmos realizar a classificação das 150 mil igrejas evangélicas de maneira semi-supervisionada nós usamos Snorkel, uma biblioteca escrita em Python (página do Github, introdução ao Snorkel, texto do medium com um apresentação bem legal do Snorkel) cujo símbolo paradoxal é um polvo com máscara e tubo de mergulho (que, em inglês, chama-se “snorkel”).

Para isto, foi preciso treinar um algoritmo de classificação usando uma amostra dos dados. De forma sucinta, os dados são separados em amostras que são usadas para treino, teste e validação da classificação. Para classificar os mais de 150 mil nomes únicos presentes na amostra de treino, criamos funções que classificam de forma grosseira as igrejas (e.g., se a palavra “assembleia” estiver presente, classificar a igreja como “evangélica”). Depois de escrever dezenas dessas funções, comparamos sua acurácia com uma amostra de teste de 5% dos nomes únicos, manualmente classificados por dois pesquisadores. Feito isso, usamos uma rede neural que combina em camadas estas funções e voilá: 91.8% de acurácia. Sabemos que este resultado não é perfeito, mas ele torna o trabalho de classificação viável. O notebook com o processo está disponível aqui.

Era Lula-Dilma: ascensão exponencial de igrejas evangélicas

No total, o algoritmo treinado classificou mais de 150 mil igrejas evangélicas criadas entre janeiro de 1960 e dezembro de 2018. A figura 1 nos mostra a série histórica de igrejas criadas no Brasil por mês nesse período. A figura 2 mostra a tendência de crescimento dessa série histórica. É evidente como o crescimento se acentua a partir da primeira década deste século, apresentando saltos de crescimento no final da primeira década e início da segunda década, coincidindo com o segundo governo de Lula e o primeiro governo de Dilma.

Figura 1 . Série histórica da criação de igrejas evangélicas no Brasil por mês/ano, entre Janeiro de 1960 e Dezembro de 2018

Figura 2 . Curva de tendência observada na série histórica da criação de igrejas evangélicas no Brasil por mês/ano, entre Janeiro de 1960 e Dezembro de 2018

A Figura 3 mostra as cidades onde mais igrejas evangélicas foram criadas entre janeiro de 1960 e dezembro de 2018. É intuitivo observar que São Paulo e Rio de Janeiro, por serem as cidades mais populosas, são também as cidades onde mais igrejas foram criadas. O Rio de Janeiro apresenta ao redor de 5 mil igrejas e São Paulo apresenta ao redor de 7.500 igrejas, 25% a mais. O que não é intuitivo é que essa diferença seja tão pequena, já que São Paulo tem praticamente o dobro da população do Rio de Janeiro, segundo estimativa do IBGE. Ainda segundo a estimativa do IBGE, Brasília, Salvador, Belo Horizonte e Fortaleza completam o grupo das seis cidades mais populosas do Brasil, e isso justifica que estejam entre as cidades com mais igrejas evangélicas. O que, novamente, não parece justificável é que cidades com aproximadamente 1/3 da população de Salvador, como Duque de Caxias, São Gonçalo e Nova Iguaçu, no estado do Rio de Janeiro, tenham aproximadamente o mesmo número de igrejas evangélicas que a capital baiana. Curiosamente, estes números aparentemente desproporcionais de igrejas evangélicas foram observados nas cidades mais populosas do Rio de Janeiro, berço político do bolsonarismo.

Figura 3. Cidades com maio número de igrejas evangélicas criadas entre Janeiro de 1960 e Dezembro de 2018.

Conclusão

Aqui usamos métodos de inteligência artificial para identificar, com acurácia de mais de 90%, igrejas evangélicas presentes no cadastro de CNPJ disponibilizado pela Receita. Entre as mais de 50 milhões de empresas ali descritas, foi possível identificar mais de 150 mil igrejas evangélicas criadas no Brasil entre 1960 e 2018. Analisando os dados, observamos dois padrões interessantes que nos fazem levantar algumas hipóteses.

Padrão temporal: o crescimento desproporcional de igrejas evangélicas nos governos Lula e Dilma pode ser devido à desmobilização dos sindicatos durante aquele período, o que fez com que as igrejas se tornassem os espaços de sociabilidade onde as pessoas podem falar sobre seus desejos e anseios, como especulado por Marcio Pochmann.

Padrão espacial: uma consequência do número desproporcional de igrejas nas maiores cidades do estado do Rio de Janeiro pode ser justamente o nascimento do bolsonarismo.

Sobre os autores

Charles Novaes de Santana: Cientista da computação, mestre e doutor em mudanças climáticas, com experiência no uso de técnicas de inteligência artificial e de aprendizado estatístico para responder perguntas interdisciplinares. É co-fundador de DataSCOUT, apaixonado por fractais, redes complexas, e por identificar padrões escondidos em amontoados de dados.

Tarssio Barreto: Estudante de doutorado do Programa de Engenharia Industrial da Universidade Federal da Bahia. Dedica o seu tempo ao aprendizado de máquina com particular interesse na interpretabilidade de modelos black box e qualquer desafio que lhe tire o sono!

Fernando Barbalho — Doutor em Administração pela UnB (2014). É cientista de dados no Tesouro Nacional. Pesquisa e implementa produtos para transparência no setor público brasileiro. Usa R nos finais de semana para investigar perguntas que fogem às finanças públicas.

Leonardo F. Nascimento — Doutor em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos — IESP/UERJ (2013). Pesquisa temas relacionados à sociologia digital e aos métodos digitais de pesquisa. Atualmente é professor do Instituto de Ciência, Tecnologia e Inovação da UFBA.

Tomás Barcellos — Economista formado na UFSC (2014). Trabalha no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento desde 2015, atuando hoje como Coordenador de Inovação. É mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos Latino-Americanos da UnB.

Henrique Gomide — Professor na Universidade Federal de Viçosa. Mestre e doutor em Psicologia. Trabalhou como cientista de dados na área de saúde suplementar. Tem como principais interesses a aplicação de técnicas quantitativas e inovação nas áreas de saúde e educação.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

Fonte/Créditos: Revista Fórum

Foto: Divulgação

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